Atrasos na reconstrução do país um ano depois dos desastres naturais fazem os japoneses duvidar de sua capacidade de reencontrar a vitalidade de antigamente
Três dias após o terremoto de 9 graus na escala Richter que destruiu a costa nordeste do Japão, no dia 11 de março de 2011, uma longa fila de sobreviventes estava numa loja à espera de uma chance para comprar comida e água. De uma hora para outra, o gerador pareceu engasgar e as luzes se apagaram. Sabendo que a caixa registradora não funcionaria, todos os clientes recolocaram seus produtos nas prateleiras e esperaram o gerador voltar a dar sinal de vida. Era mais uma aula de disciplina, harmonia social e civilidade dos japoneses. A tarefa de reconstrução era de proporções quase bíblicas - ao todo, mais de 16 000 pessoas morreram, 129 000 casas foram destruídas e os vazamentos na usina de Fukushima, além de espalhar radiação e pavor, colocaram em xeque o modelo de geração baseado na energia nuclear. Mesmo diante de t odos esses desafios, o mundo - e a maior parte dos japoneses - não duvidava da capacidade do país de se reerguer rapidamente. Tinha sido esse o caso repetidas vezes no passado.
O mais célebre exemplo de superação aconteceu depois da Segunda Guerra Mundial, quando 5 milhões de japoneses morreram e 30 milhões - metade da população na época - perderam suas casas. A coesão e a disciplina de políticos, empresários e povo serviram de base da reconstrução vista nas décadas seguintes. Mais recentemente, após o terremoto de Kobe, em 1995, o mundo viu, admirado, mais um caso do poder de transformação dos japoneses. Embora menos mortífero que o tremor de 2011, o de Kobe destruiu o porto mais movimentado do país e a rede de estradas e ferrovias economicamente mais importante. Em três meses, o trem-bala que ligava Kobe ao resto do país foi reaberto.
Nos últimos 12 meses, porém, o processo de recuperação tem deixado os japoneses desapontados. Cidadãos de outros países provavelmente estariam satisfeitos com o que já foi feito até agora, como a construção das mais de 50 000 casas temporárias. Para os padrões japoneses, no entanto, a impressão é de lentidão. Na maior parte das áreas atingidas, a situação é desoladora. Mais de 160 000 pessoas ainda estão desalojadas. "Nos últimos meses, tem ficado claro que falta coesão dos políticos sobre o plano de reconstrução", diz Bill Emmott, ex-diretor da revista The Economist e autor de oito livros sobre o Japão. "A sociedade japonesa está dividida em grupos que competem ferozmente entre si. "Logo após o terremoto e o tsunami, os membros do Partido Democrata Liberal, o principal da oposição, negaram-se a marcar reuniões com Naoto Kan, na época o primeiro-ministro, do Partido Democrata do Japão. Em agosto, brigas internas entre os próprios democratas forçaram a saída de Kan - substituído por Yoshihiko Noda. Num ambiente assim, não chega a surpreender o fato de a confiança dos japoneses nas instituições ter caído de 51% para 34% em um ano.
Yasuchika Hasegawa, presidente da Takeda, uma das maiores empresas farmacêuticas do Japão, resumiu as expectativas de parte do empresariado num artigo escrito no primeiro semestre do ano passado para um estudo da consultoria McKinsey. Hasegawa argumentava que o bom histórico do país nos processos de reconstrução após catástrofes naturais contrastava com a falta de ação para resolver questões de longo prazo. A esperança de Hasegawa era que a força transformadora contagiasse positivamente o país. Pelo que se viu nos últimos 12 meses, o mito da coesão pós-desastre desapareceu, e os problemas estruturais continuaram intactos. Problemas, é bom esclarecer, da terceira maior economia mundial, um país com uma renda per capita de quase 43 000 dólares, referência em segmentos de alta tecnologia e no setor automobilístico. Mesmo com a economia semiparalisada há décadas, os japoneses têm um padrão de vida superior ao de 92% da população mundial. O Japão é um caso exemplar de nação que soube enriquecer antes de envelhecer - um modelo a ser seguido. (O Brasil, por exemplo, encontra-se em pleno processo de envelhecimento e corre o risco de não aproveitar o momento para ficar rico.) Demonstrações continuam a acontecer, como a inauguração, em março, da Tokyo Sky Tree, a mais alta torre de TV do mundo. Mas elas parecem insuficientes para levantar o astral nipônico.
A lista de prioridades
Até o final da década de 80, o Japão era o que a China é hoje. As previsões diziam que o século 21 seria o do Japão. As discordâncias eram sobre o ano em que a economia japonesa ultrapassaria a americana, uma discussão que perdeu o sentido após o estouro da bolha imobiliária e financeira japonesa na década seguinte. Nos últimos 16 anos, o PIB do país cresceu, em média, 0,77% ao ano. As empresas loais de eletrônicos e automóveis passaram a enfrentar uma competição feroz de coreanos e chineses. Mesmo antes do desastre em Fukushima, o preço da energia já era 40% mais alto do que nos Estados Unidos. "Produzir no Japão está difícil. O país tem uma moeda forte e salários altos", diz Naoki Kamiyama, diretor de pesquisa do Deutsche Bank.
À medida que enriquecem, países veem o setor industrial encolher - isso aconteceu nos Estados Unidos, na Alemanha e no Japão, para ficar em três exemplos. No caso japonês, no entanto, esse processo parece ser mais doloroso. A participação da indústria no PIB hoje é de 27%, mas membros do governo continuam presos ao passado do Japão industrial, obcecados pela ideia de monozukuri, o conceito quase mítico de "fazer as coisas". O setor de serviços, por sua vez, não chega a entusiasmar. Apesar de contar com uma população altamente educada, o país não conseguiu até hoje criar uma cultura empreendedora que chegue aos pés da americana. Em resumo, o modelo econômico que permitiu a ascensão do Japão nos pós-guerra parece exaurido e nenhum novo modelo emergiu para tomar o seu lugar.
O desânimo fica claro nos jovens. Na década passada, um problema social conhecido como hikikomori - adolescentes que ficam meses trancados em seus quartos - virou fenômeno de grandes proporções. Estima-se que existam hoje entre 100 000 e 320 000 jovens nessa condição. Em qualquer país, isso já seria grave. No caso japonês, é alarmante. A população começou a declinar em 2008 e calcula-se que, em três décadas, o número de centenários igualará 0 de nascimentos. "É curioso que o país não tenha uma política clara de imigração", diz o americano Michael Smitka, autor de Demografia Histórica e Mercado de Trabalho.
São problemas conhecidos há anos. O que está mudando é a percepção que se tem deles. Até recentemente, o fato de o Japão ser a nação mais endividada do mundo não era considerado um grande problema - a demanda pelos títulos era grande, e os juros, baixos. Nos últimos meses, porém, o custo para os investidores se protegerem contra um eventual calote do Japão subiu muito. "A crise na Grécia e o déficit na balança comercial do Japão, o primeiro em décadas, fizeram os investidores prestarem mais atenção", diz Jim O'Neill, presidente da gestora do banco Goldman Sachs. O atraso na reconstrução das cidades devastadas em 2011 é, como se pode ver, apenas parte dos problemas de um país ainda exemplar.
(texto publicado na revista Exame edição 1013 - ano 46 - nº 6 - 4/4/2012)
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