Na Suécia, eleita o país-modelo no atendimentos aos idosos, os governos bancam ou subsidiam médicos, cuidadores, refeições, corridas de táxi etc. etc.
A mesma Suécia que concedeu ao escritor colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014) a maior das honrarias literárias, o Prêmio Nobel, tem se notabilizado por desmentir uma de suas frases mais antológicas: "O segredo de uma velhice agradável consiste apenas na assinatura de um honroso pacto com a solidão". Para os suecos, a terceira idade está longe de ser vivida de modo incontornavelmente solitário - muito menos desagradável. Ao contrário: não há lugar no mundo onde os idosos sejam tão bem assistidos. Além de aposentadoria digna e saúde pública de qualidade, eles têm, gratuitamente ou a um custo baixo, graças a parcerias dos governos com empresas privadas, benefícios como serviços de cuidadores, que chegam a visitá-los sete vezes por dia, entrega de refeições em casa, instalação de alarmes para emergências, táxi para os que já não conseguem mais utilizar transporte coletivo e até mesmo auxílio em atividades básicas do cotidiano, como fazer compras, lavar roupa, limpar a casa ou trocar uma simples lâmpada. Tais infraestrutura e rede de apoio fizeram com que a Suécia alcançasse o topo do ranking Global AgeWatch Index. Trata-se do primeiro indicador que mede a qualidade de vida dos idosos em 91 países, de todos os continentes.
Realizado pela HelpAge International - órgão que estuda a terceira idade e é financiado por instituições como a Organização das Nações Unidas e a União Europeia, além do governo inglês -, o levantamento, publicado pela primeira vez no ano passado, leva em conta treze indicadores, agrupados em quatro temas centrais: segurança financeira, que avalia, por exemplo, a abrangência do sistema previdenciário e a incidência de pobreza; saúde, emprego e educação; e, por fim, o que os pesquisadores convencionaram chamar de "ambiente propício", que analisa, entre outras condições, os contatos sociais e o acesso aos meios de transporte público.
Depois de levantar e comparar todos esses dados, a HelpAge concluiu ser a Suécia o país ideal para alguém envelhecer. O prodígio se deve à rara combinação entre rigor no uso das finanças públicas e ousadia no âmbito das iniciativas sociais. O país foi pioneiro, por exemplo, na criação de um sistema universal de aposentadoria, em 1913, e a rainha Silvia fundou, há dezoito anos, uma instituição voltada exclusivamente para idosos com demência, que hoje é referência internacional. No plano privado, uma destaque recente é o primeiro asilo do mundo para gays e lésbicas, inaugurado em novembro passado. Na pesquisa da HelpAge, o Brasil aparece na 31ª posição.
Ainda que a Suécia seja um país rico (a renda per capita é de mais de 58 000 dólares, cinco vezes maior do que a brasileira), relativamente pequeno (tem mais de 450000 quilômetros quadrados; cabe dentro de Minas Gerais) e de modesta população (9,7 milhões de habitantes, número inferior ao da cidade de São Paulo), sua capacidade de oferecer aos cidadãos um conjunto de benefícios que em boa parte do planeta é luxo surpreende. De acordo com o Banco Mundial, a Suécia gasta em saúde, per capita, o equivalente a 12 000 reais - cinco vezes mais que o Brasil; já com a Previdência, no entanto, o governo despende somente 9% do PIB - aqui são 12%. Para o economista e escritor Klas Eklund, professor da Universidade de Lund, as contas só fecham graças a uma série de reformas feitas ao longo dos anos, especialmente durante a crise que abateu a Suécia na década de 90 e afetou os setores cambial, imobiliário e bancário. "Vimos que estávamos muito vulneráveis e aplicamos reformas em setores que englobam desde a Previdência até os bancos, reduzindo bastante os gastos públicos", explica ele.
O aparato do Estado sueco é enxuto. No país, uma monarquia parlamentarista, os políticos não têm direito a carro oficial com motorista nem a viagens em jato privado. Os vereadores não ganham salário; recebem entre 77 e 154 reais por sessão a que são obrigados a comparecer. Nenhum deputado tem secretária ou assessor. Durante a semana, os parlamentares que moram fora da capital passam a noite em cubículos de apenas um cômodo. Nem mesmo o primeiro-ministro tem direito a empregada, e ele já declarou ser o responsável por limpar a casa e lavar a própria roupa. Os suecos prezam a transparência e não toleram a corrupção. Em 1995, Mona Sahlin, então vice-primeira-ministra e favorita a assumir o cargo de premiê, teve de retirar sua candidatura depois que um jornal local revelou que ela havia usado o cartão corporativo para pagar despesas pessoais, incluindo chocolates Toblerone. A própria rainha Silvia, após uma reportagem, vasculhou a suposta atuação de seu pai no Partido Nazista: no final da história, ele pode até ter ajudado um judeu a fugir para o Brasil.
Boa parte da gestão dos serviços voltados à população da terceira idade fica a cargo dos 290 municípios. Os condados (21 ao todo) são responsáveis por prover a saúde, enquanto cabe ao governo central e aos parlamentares estabelecer diretrizes e aperfeiçoar as leis. Pode parecer complicado, porém o sistema é tão eficiente que dá ao idoso a prerrogativa da escolha. É possível optar, por exemplo, entre uma empresa pública e outra privada, parceira do município na prestação de determinado serviço. O cidadão que precisa de ajuda com a alimentação pode definir se prefere recebê-la pronta ou se quer que um cuidador o ajude a cozinhar. O objetivo é manter a independência pelo maior tempo possível - estatísticas mostram que um em cada três idosos moram sozinho no país. Só ficam permanentemente nos asilos públicos aqueles que passam a representar um perigo para si próprios e não dividem a casa com mais ninguém. Há também a opção de um sistema misto, em que o indivíduo passa uma parte do mês em sua residência e outra na casa de repouso. Nesse caso, a finalidade é oferecer um intervalo de descanso aos familiares.
Um bom exemplo da eficiência sueca na gestão de todo esse aparato são os centros de assistência domiciliar, ou home care, na expressão em inglês. As cidades são divididas em regiões e cada uma delas tem sua própria central. É nessa central que se reúnem os cuidadores responsáveis pelo atendimento aos idosos. Lá é programada dia a dia a agenda desses profissionais e são colocadas as redes de alarme. Todo cidadão que completa 65 anos pode requerer, pelo equivalente a 37 reais por mês, a instalação de um comunicador residencial. Por meio dele, é possível pedir ajuda em caso de emergência.
A finlandesa Maarit Suopanki é diretora de um centro de assistência domiciliar no bairro de Enskede-ÅrstaVantör, no sul de Estocolmo. Ela e sua equipe, composta de 90% de estrangeiros, têm a função de acompanhar o cotidiano de pouco mais de 200 idosos que moram na região. Vinte pessoas trabalham na central durante o dia e sete à noite. A locomoção entre uma visita e outra é feita de bicicleta e a quantidade de visitas varia de uma a sete, incluindo o período da madrugada, para aqueles mais necessitados. Diz Maarit: "Não adianta tratá-los como crianças. É preciso perguntar a esses senhores e senhoras como eles querem ser cuidados. Se podem continuar na mesma casa, precisamos ajudá-los".
O processo para ter direito a esses serviços não leva mais do que cinco dias e pode ser feito on-line ou via telefone. É possível combiná-los entre si. Não há limite, contudo o requerente só consegue aquilo de que de fato necessita. Nem todos os benefícios são gratuitos. A taxa a ser paga é definida de acordo com a renda e os gastos mensais de cada cidadão, mas há sempre um teto. Ninguém pagará mais do que o equivalente a 562 reais mensais para ter assistência domiciliar com cuidadores ou 858 reais para receber em casa todas as refeições. Como a terceira idade começa aos 65 anos em países desenvolvidos, é preciso ter alcançado esse patamar para requerer os serviços. Na Suécia, não há idade mínima para a aposentadoria. Quanto mais tempo o indivíduo contribuir, maior será a soma a que terá direito no futuro. O piso é o equivalente a 2.587 reais. Em média, os suecos se aposentam aos 64 anos e 90% complementam a renda com previdência privada. Embora a carga tributária do país esteja entre as mais pesadas do mundo, a população acha que o retorno compensa. O imposto de renda por lá começa em 29%, no entanto quem ganha mais do que o equivalente a 114 000 reais por ano paga de 49% a 60%. Em contrapartida, a população exige que o Estado se responsabilize por serviços incomuns em outras nações, como a saúde bucal até os 19 anos, os estudos acadêmicos até o mestrado -e, claro, o apoio exemplar na velhice. De acordo com uma pesquisa divulgada pelo Ministério da Saúde local, apenas 4% dos suecos estão dispostos a cuidar dos pais idosos. No sul da Europa, essa porcentagem fica entre 70% e 80%. "Não é falta de amor por nossos pais, mas pagamos muito dinheiro ao governo e precisamos continuar produzindo para manter todo esse aparato", diz o advogado Jan Melander, de 44 anos, que semanalmente visita sua mãe em uma casa de repouso.
Vinte e seis por cento da população na Suécia já tem mais de 60 anos. O grande desafio em relação à velhice, nas próximas décadas, será o crescimento da parcela de habitantes com mais de 80, a qual deve aumentar 45%. Na eleição geral desta semana, 600 candidatos tinham mais de 80 anos. "Nessa faixa etária, a saúde se deteriora muito rápido e os gastos com cuidados ficam bem mais elevados", diz a demógrafa Livia Oláh, da Universidade de Estocolmo. "Teremos de melhorar os hábitos para prolongar a qualidade de vida e aumentar a produtividade." O governo já começou a arquitetar meios para cobrir os custos ascendentes. Encomendou à Pensions Myndigheten, entidade responsável pela administração das pensões no país, uma pesquisa para avaliar os efeitos de postergar a aposentadoria para os 75 anos. Manter-se no topo das nações no que se refere ao atendimentos aos idosos significará para os suecos ter de trabalhar mais. Contudo, eles parecem preferir isso a se ver obrigados a assinar um pacto honroso com a solidão.
A casa ideal para os idosos
Desde 2008, pesquisadores do KTH Royal Institute of Technology, em Estocolmo, estudam maneiras de tornar as residências mais amigáveis para a terceira idade. Mantêm em um andar da universidade, referência em engenharia no país, dois apartamentos-laboratório, nos quais fazem experimentações com voluntários e cuidadores. "O envelhecimento da população não pode ser suportado sem tecnologia", diz o engenheiro Stefan Lundberg, professor associado do departamento de tecnologia e saúde. "Nosso objetivo é procurar soluções que proporcionem independência e aliviem o trabalho das famílias." Veja aqui algumas das características da "residência ideal" planejada pelo instituto sueco.
Cozinha
1. Fogão que só é acionado ao entrar em contato com metal, para dificultar queimaduras ou mesmo focos de incêndio.
2. Exaustor com altura ajustável,que muda de cor, para evitar acidentes.
3. Geladeira que produz um alerta sonoro, caso seja deixada aberta.
4. Armários com prateleiras que descem e sobem, para facilitar o manuseio de copos e pratos.
5. Pia com altura ajustável por controle remoto.
6. Louças de cores fortes. Pessoas com algum grau de demência distinguem melhor as fronteiras quando há um contraste de cor.
Entrada
7. Porta eletrônica, que abre de baixo para cima, como uma persiana.
Sala
8. Televisor atrelado ao tablet para reproduzir receitas e filmes.
9. Se houver tapetes, que sejam de cores fortes e antiderrapantes.
10. Mesa para refeições com altura ajustável eletronicamente.
11. Sofás com altura similar à de uma cadeira de rodas.
Quarto
12. Alarme conectado à central de assistência domiciliar. Com microfone de alta potência, acionado por uma espécie de relógio de pulso, o idoso consegue se comunicar com um agente, mesmo distante do equipamento, e pedir ajuda.
13. Cama com altura ajustável, para facilitar a transição entre a cadeira de rodas e o lugar de dormir.
14. Andador com sistema de elevador para suspender o idoso caso ele caia, e câmera que o mantém em contato com algum membro da família.
A casa ideal para os idosos
Desde 2008, pesquisadores do KTH Royal Institute of Technology, em Estocolmo, estudam maneiras de tornar as residências mais amigáveis para a terceira idade. Mantêm em um andar da universidade, referência em engenharia no país, dois apartamentos-laboratório, nos quais fazem experimentações com voluntários e cuidadores. "O envelhecimento da população não pode ser suportado sem tecnologia", diz o engenheiro Stefan Lundberg, professor associado do departamento de tecnologia e saúde. "Nosso objetivo é procurar soluções que proporcionem independência e aliviem o trabalho das famílias." Veja aqui algumas das características da "residência ideal" planejada pelo instituto sueco.
Cozinha
1. Fogão que só é acionado ao entrar em contato com metal, para dificultar queimaduras ou mesmo focos de incêndio.
2. Exaustor com altura ajustável,que muda de cor, para evitar acidentes.
3. Geladeira que produz um alerta sonoro, caso seja deixada aberta.
4. Armários com prateleiras que descem e sobem, para facilitar o manuseio de copos e pratos.
5. Pia com altura ajustável por controle remoto.
6. Louças de cores fortes. Pessoas com algum grau de demência distinguem melhor as fronteiras quando há um contraste de cor.
Entrada
7. Porta eletrônica, que abre de baixo para cima, como uma persiana.
Sala
8. Televisor atrelado ao tablet para reproduzir receitas e filmes.
9. Se houver tapetes, que sejam de cores fortes e antiderrapantes.
10. Mesa para refeições com altura ajustável eletronicamente.
11. Sofás com altura similar à de uma cadeira de rodas.
Quarto
12. Alarme conectado à central de assistência domiciliar. Com microfone de alta potência, acionado por uma espécie de relógio de pulso, o idoso consegue se comunicar com um agente, mesmo distante do equipamento, e pedir ajuda.
13. Cama com altura ajustável, para facilitar a transição entre a cadeira de rodas e o lugar de dormir.
14. Andador com sistema de elevador para suspender o idoso caso ele caia, e câmera que o mantém em contato com algum membro da família.
(texto publicado na revista Veja edição 2391 - ano 47 - nº 38 - 17 de setembro de 2014)
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