terça-feira, 4 de novembro de 2014

Educação e a doença da normalidade - Lama Padma Samten


A normose é um amortecimento cotidiano que afeta nossa visão - e a maneira como criamos as crianças

As formigas descobrem um pote de açúcar e logo formam um longo careiro de seres atarefados e incansáveis transportando seu tesouro. Se você retirar o pote, elas continuarão se movendo por um bom tempo. É inevitável a conclusão de que elas se movem por um posicionamento de seu mundo interno e não pela presença concreta do açúcar.

O aspecto mais profundo disso é que, de um modo ou de outro, todos os seres - sejam insetos, vermes, mamíferos, pássaros ou humanos - movem-se pela visão de seus mundos internos, seguindo fiéis à energia interior que surge misteriosa e os domina.

As pessoas se deslocam lentas no tráfego, nas calçadas. Esperando nos pontos de ônibus, aspiram logo chegar a seu destino. Afligem-se olhando o relógio. Se pensam que o mundo enlouqueceu e imaginam que deveriam viver outra vida, logo desistem, reconhecendo a impossibilidade.

Gosto de pensar que o tema principal do filme Titanic - que, aliás, não cheguei a assistir - é a normose. A doença da normalidade. A vida segue com suas urgências, ritmos, orgulhos, invejas, desejos e apegos, preguiças, carências, raivas e medos em um barco fantasma que conduz aceleradamente a lugar algum. A expressão "normose" foi cunhada pelo educador Pierre Weil para apontar esse amortecimento cotidiano como uma psicologia instalada que afeta a visão de cada pessoa e de cada ser.

Imaginem agora que a viagem do Titanic seja longa e dentro dele haja uma escola para as crianças. O que os professores ensinariam? Com certeza os temas principais diriam respeito a como viver naquele lugar. O mundo mental dos adultos criaria o projeto pedagógico e a definição dos conteúdos. Os adultos, com suas identidades fantasmagóricas, mundos internos carregados de certezas, seriam os professores no barco fantasma. Eles ensinariam sobre planejamento e valor econômico. Apontariam o futuro e as urgências. Diriam que o mundo é sério e desdenhariam das crianças que, voltadas ao brincar, criam suas próprias realidades.

O filme ficaria mais interessante se alguém descobrisse que o barco logo se chocaria e tentasse avisar. É como se a primeira formiga que não encontrou o açúcar estivesse retornando para avisar as outras. A educação inclui naturalmente o desafio de uma cultura sustentável que a inspire e uma comunidade lúcida que a crie.

Quando vejo as longas filas de carros se movendo arduamente, me lembro das formigas. Aqui e ali alguém avisa que o barco não irá longe.




(texto publicado na revista Vida Simples nº 149 - setembro de 2014)






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