terça-feira, 4 de novembro de 2014

Quando a gente caminha lado a lado - Denis Russo Burgierman


Semana passada, saí pela calçada caminhando com Aurora, minha filhota que acaba de completar 14 meses. Ela me deu a mão para descer o degrau que havia à nossa frente, e então fomos andando lado a lado, em passos pequeninos e sincronizados. Ela me olhando lá debaixo e sorrindo com todos os seus oito dentes.

Cara, isso é muito louco. Outro dia mesmo ela tinha a mobilidade de uma tartaruga de barriga para cima. Não passava de uma bolinha molenga, com os tiquinhos de braços e pernas se agitando sem propósito ou função.

Agora a gente caminha lado a lado. Ela vai balançando nas irregularidades da calçada, mas confiante. Chega embaixo de uma árvore grande, aponta o dedinho para a copa acima de nós, e comenta comigo: "Ó!"

Aurora está me imitando. Eu tenho o costume de apontar as coisas e dizer "ó" para ela. Mas ela está também chamando a minha atenção para aquela árvore. E, então, eu olho para uma cortina de raízes aéreas, sobre o fundo verde escuro das folhas.

Assistir a uma pessoa surgindo daquilo que outro dia mesmo foi um par de células grudentas é uma doideira. A humanidade vem vindo aos poucos, primeiro num relance do olhar, depois num gritinho que é quase uma palavra, outra hora é uma risada quando alguém conta uma piada. E, quando dou por mim, a pirralha está andando ao meu lado, conversando comigo numa língua inexistente.

E aí me dou conta de que tem um indivíduo bem ali, ao meu lado. Que já há nela gostos, humores, opiniões, laços, manias, ideias, medos, desejos, histórias, vontades e sonhos em gestação. Não tem memórias, provavelmente - pelo menos não alguma que ela vá poder acessar conscientemente. Mas Aurora já tem suas raízes aéreas de um ser novo, de uma pessoa, como eu ou como você.

Engraçado como esse processo é complexo, mas nós humanos, seres binários, temos a ilusão de que seja muito simples. Acreditamos que a gente nasce em um determinado dia: 15 de junho de 2013, às 1h35 da manhã. Que nada. A gente vai nascendo, bem aos pouquinhos. Começa um montinho inerte e vai virando alguém inteiro, com prato favorito, gostos particulares, filmes preferidos, time de futebol e orientação sexual.

Eu, por mim, continuo nascendo, faz 42 anos (contados aí os 9 meses de gestação, quando eu estava ainda do lado de dentro de dona Biba, minha mãe). A coisa mais recente que nasceu em mim foi a capacidade de enxergar em outra pessoa toda a maravilha que habita este Universo.



(texto publicado na revista Vida Simples nº 151 - outubro de 2014)


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