sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Um sério problema de saúde pública - Dr. Mário Gilberto Siqueira, neurocirurgião


O crescimento do comércio de motocicletas no País aumentou 246% na última década, com a frota em circulação atingindo 18,5 milhões de unidades. Se persistir nesse ritmo, os especialistas acreditam que em cerca de quatro anos a quantidade de motos poderá ultrapassar a de carros. Esse aumento no número de motocicletas circulando nas grandes cidades certamente é o fator mais significativo para o aumento crescente de acidentes.

As lesões decorrentes de acidentes envolvendo motocicletas podem variar desde simples escoriações até a morte. Nos últimos 15 anos, o crescimento da taxa de mortalidade em acidentes com motocicletas foi de 846%, enquanto a de carros foi de 58%. Em 2010 ocorreram 13.452 óbitos no País em consequência de acidentes com motocicletas, contra 11.405 de acidentes de carros. Naquele mesmo ano, o número de casos de invalidez permanente decorrente de acidentes de trânsito foi de 152 mil, com 70% deles envolvendo motocicletas.

Um dos principais problemas resultantes desses acidentes são as lesões do plexo braquial, uma estrutura anatômica complexa localizada no pescoço, formada por diversos nervos que se entrelaçam. Estende-se desde a coluna cervical até a região da axila e, através de múltiplas ramificações, inerva toa a pele e músculos do membro superior, sendo responsável pela sensibilidade e movimentação dessa parte do corpo.

Quando o motociclista colide com o solo, pode sofrer impacto sobre a cabeça ou sobre o ombro, o que provoca uma abertura abrupta do ângulo entre essas duas estruturas, ocasionando tração sobre o plexo braquial, que pode produzir graus variados de lesão.

Nas lesões parciais pode haver dano à porção superior do plexo, com perda da movimentação do ombro e incapacidade de dobrar o cotovelo, ou lesão da porção inferior, com perda da movimentação da mão. No entanto, as lesões mais frequentes (57%) são as completas, nas quais ocorre perda da movimentação e sensibilidade de todo o membro superior, por vezes associadas a dor intensa.

Um número restrito de lesões pode apresentar recuperação espontânea, com retorno adequado da função do membro. Na expectativa dessa recuperação, em geral aguardamos um período de dois a três meses para avaliar a necessidade de tratamento cirúrgico. Os resultados das cirurgias, por sua vez, são sempre parciais, mas trazem grande impacto na vida dos pacientes, que podem, em muitos casos, retomar atividades do dia a dia e, em alguns casos, conseguir sua reinserção no mercado de trabalho.

A época ideal para a realização da cirurgia é entre três a seis meses após a lesão. No entanto, as dificuldades inerentes à rede de atendimento público fazem com que, na maioria das vezes, os pacientes não sejam tratados na época adequada.

De qualquer forma, a complexidade estrutural do plexo e a gravidade das lesões decorrentes de acidentes de motocicleta ainda são obstáculos significativos para que se alcancem resultados mais adequados. A inexistência de centros especializados suficientes para tratamento desses pacientes, associada ao encaminhamento tardio, também contribui muito para que os resultados não sejam ideais.

Os distúrbios funcionais do membro superior provocados por essas lesões são graves, por vezes acompanhados de dor intensa, e acometem principalmente adultos jovens do sexo masculino, na fase em que estão se inserindo no mercado de trabalho. A incapacidade resultante, associada ao número crescente de casos, faz com que esse tipo de lesão constitua um sério problema de saúde pública nas grandes cidades. O Brasil não dispõe de políticas rigorosas que regulamentem o comportamento dos condutores de motocicletas. A única lei de segurança existente é a que obriga o uso do capacete. Na prática, o que vemos é uma cultura de comportamento de risco e não de segurança, não existindo políticas orientadas para a prevenção das causas ou para a limitação de suas consequências.

Para melhorar a situação, a segurança nos transportes, o atendimento médico adequado e precoce e a reabilitação pós-trauma efetiva deveriam ser prioridades. Se essas medidas fossem enfatizadas, ressaltando a imperiosa necessidade de encaminhamento precoce desses pacientes a centros especializados, certamente aumentaria a quantidade de bons resultados e o contingente de pacientes incapacitados por essas lesões devastadoras seria reduzido de forma significativa.




(texto publicado no Jornal da USP nº 1.044 - ano XXX - 3 a 9 de novembro de 2014)







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