quarta-feira, 27 de abril de 2016

A bolsa espiga - Walcyr Carrasco


Unidos, os bichos atacaram a fazenda a bicadas, coices, mordidas. Os humanos partiram em seus carros

Era uma vez, em um reino distante, uma fazenda com porcos, galinhas, burros de carga, coelhos, perus e até um casal de pavões. Todos insatisfeitos. Certa noite, reuniram-se em assembleia, quando os humanos já dormiam.

– Somos explorados! – grunhiu um porco gordo.

– Nem podemos chocar nossos ovos, eles comem todos. – cacarejou uma galinha revoltada.

– Pior é meu caso. Sei que serei assado no Natal! – lamentou-se o peru.

– Vivo exausto de tanto carregar! – zurrou o burro.

– É preciso mudar! Pelos direitos dos bichos – bradou o porco líder. 

– Não é preciso radicalismo – latiu o cachorro que era de estimação e não tinha do que reclamar.

– Vendido! Troca sua liberdade por ossos – acusou o galo. – Os explorados somos nós.

Unidos, os bichos atacaram a fazenda a bicadas, coices, mordidas e cabeçadas do porco. Os humanos partiram em seus carros. Houve nova assembleia. Todos concordaram que os porcos comandariam. Várias decisões foram tomadas.

– Nenhum bicho comerá outro! – cacarejou uma galinha.

– O galo todos os dias cantará as notícias, com absoluta liberdade de expressão – garantiu o porcão.

Havia um paiol, cheio de milho. Também concordaram que os porcos cuidariam da distribuição aos outros. Os ratos quiseram participar, mas foram expulsos.

– Não são animais de criação! – relinchou o cavalo.

O cachorro preferiu ficar em seu canto, não havia clima para latir.

Logo os bichos perceberam que estavam recebendo menos milho. E que os porcos estavam mais gordos.

– Houve desvio de milho! – acusou uma galinha.

– Jamais! Não havia a quantidade que estimamos no paiol! – retrucou o porco.

A coruja, que tudo via na noite, piou.

– Eu tenho uma denúncia a fazer.

Os porcos atacaram a coruja, que voou para o galho mais alto de uma árvore. Na madrugada, quando o galo foi cantar as notícias, alguns porcos também correram atrás e o galo perdeu algumas penas da cauda. Uma galinha denunciou:

– Os porcos estão comendo mais que nós!

– Nunca. Só nos alimentamos bem para manter a ordem! – garantiu a porca.

E a galinha denunciante desapareceu, embora até então fosse amiga dos porcos. Da cozinha, um cheiro já conhecido. O pavão olhou pela janela. Era galinha na panela!

– Estão traindo nossos princípios.

Foi discutir com os porcos e voltou sem as plumas, mas com uma carga extra de milho.

– Fiz um acordo pela governabilidade – explicou.

Faltava cada vez mais milho. As galinhas eram a maior força e cacarejaram revoltadas.O porco líder determinou.

– Está instituída a Bolsa Espiga!

Um coelho esperto tentou:

– Já é hora da passagem do poder.

Muitos bichos concordaram. No dia seguinte, um escândalo. Os porcos denunciaram: o coelho levava uma vida sexual atirada. Prova disso eram os inúmeros coelhinhos correndo no gramado. Uma pata grasnou:

– Se nem a coelha pode ter confiança, nós não podemos!

Naquela noite, os porcos, ainda mais gordos, apareceram andando sobre duas patas. Revolta.

– Parecem humanos! – zurrou o burro, que já passava fome.

– Galinhas e patos sempre andaram sobre duas pernas! É nosso direito também! – retrucou o porcão.

Era lógico. Os porcos continuaram protetores dos bichos. Mas o milho do paiol sumiu ainda mais. A coruja, que tudo via de noite, quebrou o sigilo. Contou tudo para o galo, que cantou:

– Os porcos se aliaram aos ratos, que roubam para eles de noite!

Havia um depósito embaixo da casa, na qual agora os porcos moravam. Escândalo! Revoltados, os bichos atacaram os porcos. Grunhindo alto, eles se refugiaram no fundo do chiqueiro. O coelho assumiu o poder. Encarapitou-se numa janela e declarou:

– A ordem será mantida com respeito a todo bicho cidadão. Está tudo sob controle.

Estava?

Nesse instante, ouviu-se o ruído de motores. O cachorro abanou o rabo. Eram os humanos voltando. Afinal, só haviam tirado férias.

PS - Espero que ninguém sinta-se ofendido a menção a porcos. Esse texto homenageia "A Revolução dos Bichos", de George Orwell, onde os porcos são protagonistas.

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