Ninguém briga com amigo por causa de política. Os políticos vão, os amigos ficam
Tenho um grupo de amigos desde os tempos do antigo colegial. Prefiro não fazer as contas exatamente, por uma questão de vaidade. Mas pensem em mais de 40 anos. Às vezes nos encontramos para comer pizza. Trocamos figurinhas pelo WhatsApp. Ao longo do tempo, acompanhamos nossos amores, separações, crescimentos e reveses econômicos. De repente, o grupo incendiou-se.
– Estamos diante de um golpe! – afirma um amigo.
Estranhei. Nos tempos da ditadura, ele era mais do grupo “Paz e Amor” do que propriamente político. Pode ter tido simpatia pela esquerda radical, talvez. Ativista, nunca foi. Surpreso, descobri que se tornou o mais radical dos radicais. Mesmo tendo perdido, recentemente, seu negócio, que geria havia mais de 40 anos. E que lhe garantia a sobrevivência. Foi por água abaixo e ainda ficou com uma dívida de impostos enorme. Foi feita uma coalizão entre os amigos para, cada um dando uma parcela, ajudá-lo a não perder o que sobrou. Não tem aposentadoria. Filho de família de classe alta, está prestes a deixar o convênio médico.
– Hoje em dia o SUS, quando se chega aos casos mais graves, funciona muito bem.
– O problema é marcar a consulta. Pegar senha. Sei do caso de uma moça com tumor no seio que teve a operação marcada para o ano seguinte!
– Ah, mas aí...
Ficou no aí. Quem teve educação de classe alta tem conexões, não é? Um amigo diretor de hospital que pode passar na frente da fila. Mas isso não é dar um jeitinho? Para quem defende tão acirradamente o PT como um exemplo de ética, não devia ser o primeiro a evitar o tal jeitinho? Os outros do grupo são contra.
– Temos de limpar toda essa sujeira! – diz outra, que hoje mora na antiga casa de férias, para viver do aluguel da residência anterior.
Eu concordo. O radical rebate:
– Corrupção sempre houve no Brasil. É histórica. Por que dar um golpe agora?
– Corrupção no passado não elimina o crime no presente. Se houve, terá de ser punida de acordo com os instrumentos legais. E se a presidente praticou atos ilegais, cabe o impeachment
– tento argumentar.
Novos protestos. A amiga que pensa como eu insiste:
– Você, que tem acesso a milhões de brasileiros, devia explicar tudo isso pela televisão.
Ahhh...como é difícil! Por que tanta gente acha que sou dono da Globo? Sou um escritor contratado, responsável pela minha obra. No momento, escrevo Eta mundo bom!, novela das 18 horas, que é de época. Adoro a novela, adoro meu trabalho. Prefiro falar do comportamento humano, das paixões. A emissora sempre respeitou completamente o que escrevo, até na polêmica Amor à vida, onde houve o primeiro beijo gay em televisão aberta. Mas não posso invadir a bancada do Jornal Nacional, por exemplo, tomar o microfone e fazer um discurso. Cada um na sua função.
O mais inteligente da nossa antiga classe continua sendo muito articulado. Empresário de sucesso, entrou na conversa:
– Não é golpe. Dilma infringiu a Lei de Responsabilidade Fiscal e isso caracteriza o processo de impeachment. Lula, ao deixar a Presidência, tornou-se cidadão comum. E um cidadão comum pode ser processado por um juiz como Sergio Moro. É lei. Outras autoridades responderam a processos, depois de deixar o cargo.
O outro rebate.
– Mas quem está por trás de tudo é a direita.
– A questão é a lei. Corrupção sempre houve, sim. Mas essa é a primeira vez que um governo organiza a cobrança de propina, para repartir com a base aliada.
– Vamos comer uma pizza quarta-feira? – propõe outra.
– Só se eu for de camisa vermelha – anuncia o radical.
Imagino o que será a pizza! Aviso rapidamente que não poderei, estou com a agenda que é um horror. No meu íntimo, penso que só toparei a pizza depois de tramitado o processo de impeachment.
O articulado dá números de leis. O radical firma pé: é golpe. Outra amiga envia uma foto de bombons, está se fartando e quer mudar de conversa. Argumento:
– Acreditar na defesa do PT hoje é questão de fé. E fé não se discute. Melhor acender uma vela em Aparecida.
Protestos. Não estávamos tendo uma discussão séria?
Eu já lamentei muito quando o governo politizou a Educação e a Saúde, que deveriam ser intocáveis. Agora, politizou-se a amizade!
Vamos combinar? Ninguém briga com amigo por causa de política.
Está difícil, minha paciência é curta. Mas insisto. Os políticos vão, os amigos ficam.
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