domingo, 18 de agosto de 2013

Vai-se a dor, ficam os dentes - Diogo Sponchiato


Pesquisadores cariocas mapeiam o jeito mais certeiro de tratar o problema de canal, que obriga as pessoas a correrem para o dentista

Ele está na boca do povo, provocando dores que nem comprimidos de analgésico silenciam. É voar até o consultório e ouvir: "Precisamos tratar o canal". Antes que a vítima rogue pragas imaginando que perderá o dente ou passar´por uma sessão de tortura, convém lhe informar que ela vive no século 21 e a endodontia, especialidade focada nas profundezas da dentição, evoluiu bastante. Foi-se o tempo em que resolver um canal demandava três, quatro peregrinações, às vezes dolorosas, até ali. E é no sentido de aprimorar ainda mais os procedimentos e seus resultados que um grupo da Universidade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro, tem pesquisado as melhores formas de arrematar o suplício. "Queríamos saber qual o tratamento mais eficiente para eliminar a infecção que ataca a polpa do dente", conta o dentista José Freitas Siqueira Júnior, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Odontologia da Instituição.

Agora, um momento de suspense não proposital. Porque, antes de revelar os achados da equipe de Siqueira, é nosso dever desmitificar o que é o canal. O senso comum prega que é a morte do dente ou a ruína do nervo que mora ali. "O termo se refere, na verdade, a um processo de inflamação e infecção na polpa dentro do dente e que, quando progride, pode levar à morte dessa estrutura e chegar até a raiz", explica Giulio Gavini, professor titular de endodontia da Universidade de São Paulo.

E como será que as bactérias fariam esse ataque terrorista? "As duas principais causas de canal são a cárie e traumas nos dentes", conta o endodontista Mario Zuolo, da Associação Paulista de Cirurgiões-Dentistas. Ou seja, a corrosão gradual ou a destruição das suas camadas externas abrem a brecha para os micróbios tomarem a polpa, cheia de vasinhos e terminações nervosas. "Por causa da inflamação, aumenta a pressão ali dentro, o que comprime o nervo e causa dor", descreve Siqueira. Se o indivíduo demora para ir ao dentista - e não é à toa que até alguns prontos-socorros já dispõem de especialistas -,  a contaminação leva à necrose, estágio em que a infecção avança dente abaixo e não raro gera abscessos. Daí os inchaços no rosto. 

A história relatada é compartilhada todo ano por milhares de brasileiros. "Nos Estados Unidos, estima-se que cerca de 40 milhões de tratamentos de canal sejam feitos anualmente. Embora não tenhamos estatísticas precisas no Brasil, o número também deve ser expressivo por aqui", acredita Caio Ferraz, professor de endodontia da Faculdade de Odontologia Estadual de Campinas. "Um trabalho recente na Região Norte do país mostra que uma em cada cinco pessoas já se submeteu ao procedimento", completa.


Apaga o fogo e reforma a casa

Quando alguém chega ao dentista com o canal em crise, o tratamento se divide basicamente em abrir o dente e aliviar  dor infernal, desalojar as bactérias invasoras dali e, por fim, remendar sua área interna. No estudo da Universidade Estácio de Sá, conduzido com 80 pessoas, os especialistas buscavam identificar técnicas e medicamentos mais eficazes para que o tratamento ocorresse numa boa e não cobrasse complicações mais tarde. "Descobrimos que, após remover  polpa doente, quanto mais largos forem os espaços para introduzir depois o material de obturação, maior a chance de eliminar as bactérias", relata Siqueira. Ele e seus colegas também notaram que é melhor tratar o canal em duas sessões quando a infecção toma conta da polpa - na primeira faz-se a faxina extraindo a área contaminada e, uma semana depois, instala-se a obturação definitiva -, embora existam casos em que uma única ida ao dentista seja suficiente. E ainda identificaram a substância antimicrobiana e o material de vedação mais duros na queda.

Dados como esses ajudam a nortear as operações e minimizar falhas que culminam na reincidência do problema. "Muita gente ainda teme que o tratamento de canal siga a regra dos três Ds: demorado, difícil e dolorido, o que é um engano", garante Zuolo. "Hoje, com um profissional capacitado, em pouco mais de uma hora tratamos o dente", pontua Siqueira. Ter esse cenário mais tranquilizador em mente é importante para que ninguém negligencie a invasão da polpa dentária. "O canal não tratado pode virar um foco de infecção capaz de causar abscessos até nas regiões das vias aéreas. E ainda há a possibilidade de as bactérias ganharem a corrente sanguínea e afetarem órgãos como o coração", alerta Ferraz. Reparou que os micróbios são os grandes responsáveis pela confusão? Não à toa, o time do professor Siqueira também se debruça sobre as principais bactérias que penetram nos meandros da dentição. Uma curiosidade: o bichinho mais envolvido no canal não é o mesmo da cárie, que parece cavar o caminho para o seu parceiro atacar. "Só dá para desenvolver uma vacina se conhecermos o que causa o problema", compara Siqueira, fazendo alusão à escolha e à procura de drogas mais específicas e potentes contra o micro-organismo.

Toda informação é útil para deixar as técnicas odontológicas mais apuradas. O que, no caso da endodontia, significa salvar, sempre que possível, o arcabouço dentário - é claro que, às vezes, o dano é tão grande que pede a implantação de uma coroa. "Nosso objetivo é prevenir a extração do dente, e hoje, felizmente, as taxas de sucesso no tratamento de canal chegam a 95%", diz Gavini. E olha que a ciência não se dá por satisfeita. Já são testadas em laboratório até mesmo células-tronco a fim de regenerar a polpa perdida. Lógico, isso demorará alguns anos para chegar à boca humana. Por isso, é bom voltar a falar em prevenção. Quem não deseja enfrentar a dor violenta do canal nem ter de apelar ao dentista para apagar o incêndio e reformar o dente precisa aderir às regras básicas da higiene bucal: escovar e passar o fio depois das refeições e visitar o consultório odontológico pelo menos uma vez por ano. Afinal, apesar de tantos avanços, prevenir ainda é melhor que consertar.



(texto publicado na revista Saúde nº 363 - abril 2013)


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