domingo, 18 de agosto de 2013

Temos papa, temos pai - Lya Luft


Pode parecer supérfluo escrever sobre o assunto que domina a imprensa com análises acuradas, frases entusiasmadas, comentários escrachados, enfim, toda a humana coisa. Porque nós somos assim. Eu, que não sou muito praticante, mas acho religião, religiosidade, alguma espiritualidade fundamentais, estou encantada com esse Francisco.

Primeiro, pela modéstia e pobreza. "Ah, como quero uma Igreja pobre, como quero uma Igreja para os pobres" foi uma de suas exclamações, nesse tom de vovozinho - mas que ninguém se iluda, ali existe uma alma terna e férrea, como precisamos todos nós na figura de um pai, e ele é o pai. Recusou as vestes douradas e luxuosas, achou que seu apartamento acomodaria 300 pessoas, assombra os responsáveis por sua segurança e os encarregados de medievais formalidades, usa sapatos pretos simples, crucifixo de ferro no peito e se porta como uma pessoa: abraça pessoas, pede que rezem por ele, dá boa-noite às multidões ou lhes deseja bom almoço, e a legião de filhos se vê olhada, se sente grande.

Não sei comentar assuntos teológicos nem, na minha tranquila existência, imagino a loucura que seja administrar a Cúria, o Vaticano, onde seriedade e delírio, luxo, pompa e austeridade devem andar misturados, às vezes mal misturados, há séculos. Mas sei o que uma pessoa deseja de um pai. Primeiro, exemplo. Não adianta delegar a educação dos filhos à escola, à psicóloga, aos amigos. A base de tudo, da personalidade, do futuro, esse chão sobre o qual andaremos pelo resto da vida (tropeçando mais se for esburacado, ou com mais chance de não quebrarmos tanto a cara e a alma se for mais sólido), é a família, a casa paterna, são mãe e pai; o exemplo. "Ser exemplo, ah, eu não quero isso, é muito chato", me diz um pai ainda moço. "Então não posso fazer tudo o que quero, gora que sou adulto?" Sinto muito: é chato, é inquietante, é limitador, mas se você tem filho, sobretudo pequeno ou adolescente, você é responsável. Se quer ser sempre um gatão (uma gatinha), não tenha filho; bem melhor para todos, para o mundo. Pois é a você, ao pai, que eles vão tomar como modelo, ainda que você não queira. Pai mulherengo, pai festeiro demais, pai que não se interessa, que não olha para o tema (não é para fazer o tema pelo filho), que não repreende quando é preciso, que não estimula bastante, não abraça, não brinca, não joga bola, nõ procura saber dos amigos, não beija antes de pegar no sono, pai que ignora ou, quando comenta, ironiza, paralisa, pai autoritário demais, ou violento, pai que diz que não tem tempo... é o chato frágil que nos vai fazer cair mais, escolher pior, respeitar menos quem somos. Não falo só de filho homem. Esse meu "filho" é o agenérico, inclui as meninas, assim como esse "pai" inclui a mãe.

O grande pai que é o chefe dessa Igreja de incontáveis milhões de filhos, crentes ou meio desgarrados, é, antes de tudo, um exemplo. Com sua vida, suas convicções, seu jeito de ser: bondoso, simples, sim, mas não se iludam: vai ser, já começa a ser um reformador, um orientador, e para isso vai precisar estar alerta, e presente, e firme, e sábio, e humilde, todos os dias de seu papado - que desejo longo. Porque estamos precisados de acreditar que o mundo não é, sobretudo, caça ao prazer, ao poder, e irresponsabilidade infantil, mas algo bem melhor que isso.

Francisco, Francesco, com o gostoso som italiano, escolheu como inspiração aquele de Assis. Foi eleito para ser pai de um rebanho incontável e olha para além disso, dirigindo uma bênção aos não crentes, coisa rara até onde sei, uma bênção legítima quase nunca usada. Ele vai deslumbrar o mundo, vai assustar, vai castigar, vai fazer pisar em ovos, mudar de pouso ou de postura, adquirir compostura, sair correndo, indignar-se, aplaudir, ter esperança. Só não vai ser morno. E assim, eu aqui, a quem ele não conhece, cuja existência nem imagina, lhe desejo força, sucesso, paciência (mas não muita), paz interior, iluminação. Ele bem que vai precisar. E nós precisamos muito dele.



(texto publicado na revista Veja - 27 de março de 2013)


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