domingo, 25 de dezembro de 2016

Amor e sabor - Walcyr Carrasco



O convidado conhecia a alta culinária de Madri e Paris. Mesmo assim, repetiu três vezes minha canjica com amendoim

Comfort food. Não gosto muito de títulos em inglês. Mas, como os americanos gostam de dar rótulos para tudo, vai lá. A melhor tradução para comfort food seria “comidinha da mamãe” ou algo assim. Em um mundo onde o sal do Himalaia virou moda e às vezes a gente mastiga algo inexplicável num restaurante, surgiu um espaço, há anos, para a comida que aquece o coração. A culinária que remete à infância, às emoções caseiras. Faz tempo, eu estava lendo um livro de culinária de uma crítica americana (sim, todo guloso não só come, como também lê receitas! Pior: dizem que ler receita engorda. Mas isso é outra história). De A a Z, a cada letra, ela fazia uma pequena crônica e dava a receita do prato relacionado com aquela memória. A tantas, descrevia como era bom levar sanduíche de ovo frito para a escola quando criança. Levava no bolso de trás e no recreio comia o sanduíche amassadinho. Também sou fã de sanduíche de ovo frito. Igualmente, levava para a escola quando criança.

Lembro do caderno de receita que minha mãe mantinha. Esse caderno sumiu depois de seu falecimento. Que pena. Mas comprei um bom substituto: o livro Dona Benta. Somente um livro como Dona Benta tem aquelas receitas antigas, misturadas, de estrogonofe a manjar. Há alguns anos, o presidente de um grande banco vinha jantar em casa pela primeira vez. É um homem que frequenta presidentes, ministros, vai para Nova York como eu vou para a esquina. Deu aquele desespero. O que servir? Então pensei na história de vida dele. Na ascensão profissional árdua, vindo do interior de São Paulo. Não tive dúvidas. Fiz um prato tradicional, camarão na moranga. E, de sobremesa, manjar branco com vinho tinto. Uma receita da minha avó e de minha mãe. Em vez de usar ameixas na calda, vinho tinto com canela. Quando viu o manjar, os olhos dele arregalaram.

– Eu só comi esse manjar quando era criança.

– Sirva-se – disse eu vitorioso.

Foi um pedaço. Depois dois. Quando chegou ao quarto, propus:

– Você não quer levar para casa?

– Oh, não, não. Bem...

Chamei minha funcionária.

– Traz um Tupperware!

Pronto. Lá se foi o manjar, embalado nessas vasilhinhas práticas. O jantar, que deveria ser algo formal, terminou nessa confraternização caseira e deliciosa. Gostou? Leva para casa!

A culinária afetiva simplesmente emociona. A loucura por regimes e por manter um corpinho definido desvincula as pessoas dessa culinária em que amor se mescla com sabor. Tenho vários amigos que só comem frango, querem ter barriguinha de tanque. Eu seria muito infeliz se vivesse à base de frango! Mas também me sentiria solitário. O feijão da mamãe faz falta para todos nós, em algum momento da vida. Ou a sopa quando se fica gripado.

De alguns anos para cá, pessoas criativas perceberam esse nicho de mercado. Surgiram as cadeias que vendem bolos comuns, tipo os da vovó, a preços acessíveis. Há quem faça pudins. A venda de brigadeiros explodiu. Existe doce que mais remeta à infância que brigadeiro? Como boa parte das mães hoje em dia trabalha fora, elas encontraram, nos doces de seu passado, algo para oferecer aos filhos. Mais tarde eles se lembrarão do “ bolo da mamãe”. Embora tenha sido comprado. O que vale é a intenção.

A comida afetiva é sempre uma certeza de sucesso ao receber alguém. Há algum tempo fiz um jantar para um diretor de cinema espanhol. Outra vez, o terror. O que servir? Tomei a decisão:

– Canjica com amendoim.

Acharam doidice. Uma coisa tão simples? Para alguém que conhece a alta culinária de Madri e Paris?

Botei na mesa. Quando experimentou a primeira colherada, os olhos da mesa se cravaram nele. Fez uma expressão de surpresa. A mistura de sabores da canjica com amendoim lhe pareceu absolutamente exótica. Foram três pratos. E não mandou ver o quarto porque ficou constrangido, achou que podia parecer guloso. Eu só expliquei.

– Quis fazer um prato que comia quando criança.

Muitas vezes, com tantas falsas sofisticações, botamos num pedestal qualquer picareta estrangeiro (existem bons chefs vindos do exterior vivendo aqui. Só critico a tendência a endeusar qualquer um que tenha sobrenome estrangeiro). Ou um modismo culinário. Mas não respeitamos aquilo que está em nossa memória. A comida de nossas mães e avós. Já estou decidido. A próxima pessoa importante que for jantar em casa receberá um prato de arroz com dois ovos fritos. Gema molinha. É capaz de o convidado chorar de emoção. Quem não gosta de ovo frito?



(texto publicado na revista Época edição nº 960 - 7 de novembro de 2016)

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