quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

O drama após o Enem - Walcyr Carrasco


Há a proposta de reforma curricular e de exigir opções mais cedo. Como aos 15 anos alguém pode escolher uma área?

Veio o Enem. Ah, bom, para muitos não. Mas vem. E, durante ou depois do Enem, o jovem tem de escolher uma profissão. O que você será o resto da vida, eis a pergunta. Os que têm sorte fizeram um teste vocacional. Hum... testes vocacionais não são perfeitos. O resultado é difuso, aponta tendências. Na minha época, fiz um. Deu que eu tinha vocação para... tudo. É, tudo. Ler a palma da mão talvez seja mais exato. Um bom quiromante extrai verdades daquelas linhazinhas. Certa vez um estudante se aconselhou comigo por e-mail sobre que universidade cursar. Era de família pobre e falei para escolher algo seguro. Advocacia, medicina. Fez o teste e deu jornalismo na cabeça. Ainda insisti: os colegas jornalistas sabem que a profissão é dificil e não deixa ninguém rico. Ele insistiu em jornalismo. No meio do curso, descobriu seu ser mais íntimo: travesti. Travesti não é profissão. Mas daí decorrem várias questões e possibilidades profissionais. Algum psicólogo analisando teste vocacional consideraria essa hipótese? Pois virar travesti foi a melhor mudança que ele poderia ter feito. Virou um sucesso. Sobrevive do Snapchat e tornou-se um dos principais influenciadores do país. Agora fez ponta numa série de TV e juro que não tem dedo meu nessa história. Quer fazer stand-up comedy. E terá sucesso, eu sei. Repito: algum teste...???? Você visualiza uma psicóloga dizendo num teste vocacional:

– Bota peito, querida. Vai ser.

A garotada do Enem está saindo da adolescência. Há quem tenha sorte e saiba o que pretende fazer o resto da vida. Alguns, por uma vocação que explodiu muito cedo. Eu, por exemplo. Aos 11 anos avisei meus pais que seria escritor. Como a família não tinha nem sequer o hábito de ler (só eu), foi uma surpresa. Medo de que eu passasse fome. Papai me botou num curso de datilografia, aprendi a usar aquelas máquinas enormes, antigas. Observou:

– Se não der certo como escritor, pelo menos pode trabalhar num escritório.

Essa ferramenta ajuda-me até hoje. Sou rapidíssimo para escrever capítulos de novelas. Mesmo assim, como escritor não era exatamente uma profissão, tentei faculdade de história, cursei três anos na Universidade de São Paulo, prestei novo vestibular e concluí jornalismo na mesma USP. Se hesitei, foi porque viver de escrever não é algo linear. Tipo terminar uma faculdade e começar como trainee. Sempre soube o que desejava ser. É uma dádiva. Boa parte dos jovens se enquadra em dois tipos: os que escolhem a profissão desejada pelos pais e os rebeldes, frontalmente contra qualquer desejo ou sugestão dos mais velhos. O médico é filho de médico e surge uma dinastia. Roqueiro também pode ser filho de médico. Boa parte escolhe as profissões “certinhas”, de emprego certo, garantido. Um grande número deseja empregos públicos, estáveis. Mas isso criará seres humanos felizes? Pessoas têm um potencial, uma vocação. A família tenta induzir o jovem a escolher algo para “se dar bem”. Mas há um outro conceito de “se dar bem”. É tornar-se um ser humano pleno e realizado.

Estudei num colégio que fez nome na época. O antigo Colégio de Aplicação da USP, fechado pelo governo militar. Reabriu depois. Era experimental e proporcionava a todos nós experiências variadas e extracurriculares. Do Colégio de Aplicação saíram pessoas que se tornaram importantes em vários campos. Há a proposta de modificar o currículo e exigir que escolhas sejam feitas mais cedo. Como aos 15 anos alguém pode escolher uma área? Pior: não haverá opção. A maior parte estudará onde conseguir. Se houver vaga em um colégio mais voltado para humanas, é para lá que vai, mesmo que seja um gênio em física. No passado, havia clássico e científico. Mas em todas as escolas.

A decisão vocacional, muito difícil mesmo após o Enem, com um conhecimento tênue das carreiras, nem existirá mais. De certa forma, o Estado decidirá pelos cidadãos. Será muito dinheiro perdido. Engenheiros sem contato com a filosofia, já adultos, podem se apaixonar por ela e jogar anos de estudo fora para recomeçar. Da mesma maneira, filósofos que não se encontrarem na vida acadêmica vão recomeçar em arquitetura, por exemplo. Tempo, dinheiro e capital humano gastos à toa. Será mais caro. Se alguém sentir o impulso da vocação mais tarde, que se vire se não tiver as ferramentas apropriadas. A reforma educacional reduz opções. E reduz a vida. Vocação, para quê?



(texto publicado na revista Época nº 961 - 14 de novembro de 2016)

Nenhum comentário:

Postar um comentário