Pensei em bater com a tocha no presidente do Bradesco. Ele ficaria com o trecho plano. Eu, com a subida
Quando recebi o convite para conduzir a tocha olímpica, há meses, levei um susto. Eu, exemplo de atleta? A esteira, que comprei num momento de atitude saudável, serve de cabide. Mas fui convidado para conduzir a tocha em Marília, interior de São Paulo, cidade para onde me mudei aos 3 anos, com minha família. Saí aos 15. Ainda tenho amigos, dos tempos de criança e adolescência. A minha professora de ciências, dona Thelma, tão querida, que me ensinou a pensar, ainda está lá, velhinha. Aceitei, meio sem pensar.
Depois, fiquei apavorado. Em meio à novela Eta mundo bom!, como arrumar tempo para a viagem? Havia uma facilidade. Os filhos de Marília, convidados pelo Bradesco (que também começou na cidade), iriam de jatinho. Bem cedo. Às 7 da manhã, exatamente. Para quem vai dormir às 5, um belíssimo horário, não? Céus. Estaria exausto! Medo. E se derrubasse a tocha? Vergonha mundial!
Na noite anterior, tomei remédio para dormir e mudar meu ciclo de sono. Deitei às 10. Às 4h30 pulei da cama, lépido. Botei meus tênis de corrida (que também comprei em um momento de esperança de ter vida mais saudável). Fui para o aeroporto. Voamos de São Paulo para Marília. Fomos levados ao Instituto de Educação Monsenhor Bicudo, para receber os uniformes e as tochas. Foi lá que estudei. Nessa escola, ganhei meu primeiro prêmio, de redação. Também escrevi meus primeiros contos, incentivado pela professora de português, dona Nilce. E, justamente no local onde recebi o uniforme, fiz minha primeira peça, aos 12 anos. O rapto das cebolinhas, de Maria Clara Machado (eu era o vilão Camaleão Alface). A emoção cresceu.
Botei o uniforme, fizemos fotos. A coordenadora explicou como seria. Tudo incrivelmente organizado. Aprendi a “abrir” a tocha, para liberar o gás. A dar o “beijo da tocha”, quando uma pessoa passa o fogo para outra. Um ônibus me levaria ao ponto em que deveria esperar. Descobri que as tochas mudam a cada condutor. Mas o fogo tem a mesma chama que veio da Grécia, com as bênçãos de Apolo. Gosto muito de Apolo, deus que conduz o sol, na mitologia grega. Pedi uma forcinha.
– Todos vocês, sorriam. Aproveitem! É um momento especial! – avisou a coordenadora.
Em uma ocasião rara, o uniforme não estava deslizando na minha barriga. Salve! Se fico mais barrigudo, shorts deslizam. Se não seguro, fico de cuecas. Segurar como, com a tocha na mão? E aí ela explicou o trecho de cada um.
Horrorizado, descobri que ganhara 200 metros de subida íngreme! Perguntei ao Trabuco Cappi, presidente do Bradesco, por que justamente aquele trecho era o meu! Somos amigos desde meninos. Ele explicou que era para eu entregar a tocha para ele, em nome da amizade. Ele correria no plano, encerrando o grupo. Depois, seriam os convidados da Coca-Cola. Ameacei quebrar a tocha na cabeça dele. Inútil. O percurso já estava decidido.
De tocha na mão, entramos no ônibus. As ruas estavam cheias, com gente dos dois lados. Fui deixado no meu lugar. Uma jovem, guardiã da chama olímpica, já estava a postos, para me dar apoio. Policiais também. Olhei a subida. Imensa. De repente, a guardiã avisou.
– Vamos atravessar a rua.
José Vicente, da Universidade Zumbi dos Palmares, corria na minha direção. Também é de Marília, começou como engraxate. E criou esse projeto incrível de educação para negros. Estendeu a tocha. Abri a minha. A chama se ergueu! De tocha na mão, escoltado, comecei a me mover. À frente, um carro com música. De súbito, baixou um sentimento inesperado. Corri na subida! Mais ainda, dancei. Não sei o que houve, nunca danço! Só pode ser a chama de Apolo. Quando percebi, já estava diante de Trabuco. Estendi a tocha e passei a chama adiante. E descobri que estava cansado. Mais tarde, ele também confessou:
– Na hora eu não sei o que houve, mas corri e me entreguei. Levei a tocha!
Depois, foi me trocar e voltar. Recebi mensagens mal-humoradas e agressivas pelas redes sociais. Diziam que eu devia ter vergonha de conduzir a tocha, que a Olimpíada nada acrescenta ao país. Penso que a vida deve ser encarada com bom humor. Politizar tudo é perder a paixão. Pouco mais de 1.800 pessoas conduzirão a tocha no país. Fui uma delas. Gostei. Subi 200 metros voando. E descobri o que é o tal espírito olímpico. A gente dá tudo de si, simplesmente.
Ganhei minha tocha. Será um troféu. Já posso me exibir. De barriga ou não, sinto-me na categoria de atleta olímpico.
(texto publicado na revista Época de 11 de julho de 2016)
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