sábado, 31 de dezembro de 2016

O quilombo de Mumbuca - Walcyr Carrasco


Um incêndio criminoso isolou a área bem na época da colheita do capim-dourado, usado no artesanato

Há meses entreguei um prêmio no Ministério da Educação, em Brasília, para professoras que criaram projetos de incentivo à leitura. Uma das vencedoras me disse, emocionada:

– Comecei a ler por sua causa. E hoje sou professora.

É o tipo de mensagem que faz a vida de um escritor valer a pena! Ela vinha do quilombo de Mumbuca, no Jalapão, Tocantins. Convidou-me para visitá-lo. Aceitei. Escrevia uma novela na época, esperei terminar. Há semanas, parti. Desci em Palmas, capital do Tocantins. De lá, um guia me levou ao Jalapão, parte pouco conhecida do país, belíssima, com montanhas, areais, dunas, cachoeiras. Quando chegamos à pequena cidade de Mateiros, tivemos a notícia. O quilombo estava inacessível. A ponte que o liga ao resto do mundo sofrera um incêndio criminoso. Pior, justamente na época da colheita do capim-dourado. O artesanato com o capim, que só dá na região, é a base econômica do quilombo. Fazem bijuterias, vasos, chapéus, mandalas. Que têm reflexos dourados, daí o nome do capim. Convenci meu guia a botar o 4x4 no rio. Atravessamos o leito cascalhado. Em certo momento, a água quase entrou no motor, mas conseguimos. Ana, a professora que me convidara, já fora prevenida por telefone e me espera. Chego carregado de livros, de minha autoria, para a biblioteca do quilombo. Poucas vezes fui tão bem recebido. Cantam para mim. Mostram os campos de capim-dourado, lindos! Há um quadro com a árvore genealógica dos habitantes. Hoje são umas 60 famílias, que descendem de dois casais de escravos fugitivos. E... surpresa! É um matriarcado, desde sua formação. A grande mentora foi dona Miúda, falecida, que descobriu o uso do capim-dourado no artesanato. Quem nasce lá tem um profundo senso de comunidade. Pode sair, mas sempre volta.

– Moro uma parte do tempo em Palmas, onde trabalho, mas volto para a colheita do capim – conta-me Miriam, uma moça bonita. – Aqui é meu lugar.

Ana fez universidade. Mas voltou para seu quilombo. Um rapaz, Maurício, ótimo cantor, faz apresentações pelo Brasil todo. Mas sua casa é lá. A cada turnê, retorna. Uma senhora magra, de 60 anos e porte aristocrático, me recebe em sua casa de chão de areia – no quilombo o piso é esse, areia. É a Dotora, assim mesmo, sem o u. Faz curas com remédios caseiros, à base de buriti, a palmeira da região. Dá ajuda espiritual. Principalmente conselhos para manter a paz entre os moradores. Dona Santinha e dona Laurinda, a parteira, também contribuem com o bem-estar social. São mulheres fortes, experientes. Referências para os moradores. Observo a Dotora sentada na rede, conversando, gesticulando. Penso:

– Nunca vi mulher tão elegante!

A pobreza da cidade grande, com a qual estamos acostumados, é luxo diante da vida no quilombo. As casas têm paredes de tijolos não caiadas e tetos de folhas de palmeira. A sobrevivência é na base do mínimo. O calor, causticante. Há uma escola, mas, fora Ana, os outros professores não vêm há meses. Posto de saúde, nem pensar. Vivem como provavelmente viveram seus antepassados há 200 anos: da floresta, do rio, de uma pequena agricultura e criação doméstica – há galinhas em todas as casas. Há neles um sentido de comunidade que eu não via havia muito tempo: todos se preocupam com a sobrevivência de todos. As vendas do artesanato, concentradas em um salão da associação local, servem ao bem comum. Existe um grande tesouro: a colmeia da mumbuca, abelha que deu nome ao quilombo. Faz sua colmeia dentro da terra, em forma de cone. Seu mel raro só é extraído para a produção de remédios.

Apesar de toda a alegria com minha chegada, ninguém esconde a preocupação. A falta de ponte afastou os turistas na festa da colheita, o grande momento do ano. A época da cheia logo chegará. Nem um 4x4 conseguirá atravessar o rio. Mumbuca ficará definitivamente isolado. O governo do Tocantins alega falta de verba. A responsabilidade passou para o município de Mateiros. Este, embora viva de turismo e tenha no quilombo uma atração importante, também diz não ter como construir a ponte. O autor do incêndio não foi descoberto. Perguntei a um morador o que achava de tudo isso:

– Ficaremos como antes, há 200 anos. Isolados.

A abolição da escravidão aconteceu há muito tempo. Mas os moradores de Mumbuca continuam a enfrentar circunstâncias ruins, que parecem datadas da época em que seus antepassados fugiram de seus senhores. Estão por si mesmos, sozinhos na luta por sua ponte.



(texto publicado na revista Época nº 955 - 3 de outubro de 2016)

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