segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Quem pode mais chora menos - Flavio Gomes


Sim, há diferença: a Ferrari de Barrichello não é exatamente a mesma Ferrari de Schumacher

Schumacher é primeiro piloto por definição, natureza e instinto. Aposentou Piquet na Benetton e nunca mais teve de se preocupar com parceiros que o incomodassem. Na Ferrari desde 1996, sempre gozou de tal condição. Foi contratado para salvar a pátria vermelha, não faria sentido aborrecê-lo com preocupações que não fossem tirar o time da fila.

Rubens Barrichello foi contratado para ser o parceiro de Michael Schumacher a partir da temporada de 2000. E teve de lidar com uma cruel realidade: os grandes nomes do país na categoria, de uma forma ou de outra, sempre se impuseram como primeiros pilotos nas equipes de ponta que defenderam. E nunca um piloto do Brasil, em equipe de ponta, teve de conviver de maneira tão clara com uma posição secundária, de coadjuvante de luxo. Deixou de ser o queridinho afagado por chefes de equipe paternalistas para enfrentar a dura realidade de dividir as atenções com alguém como Schumacher numa estrutura, a de Maranello, completamente diferente de tudo que já tinha visto na vida. Ainda bem que a choradeira de Rubens parece ter estancado no início deste ano, diante das evidências.

Enquanto lá estiver, Schumacher será o primeiro piloto. Faz todo sentido, é uma aposta certa - daí seus privilégios. Que existem, mas são menos determinantes para seus resultados do que gostariam aqueles que re lutam em aceitar sua superioridade em relação a Barrichello ou a qualquer um que com ele venha a dividir os boxes da Ferrari.

Dois dos mais importantes funcionários da equipe foram contratados a pedido de Schumacher, que com eles trabalhou durante anos na Benetton: Ross Brawn, o diretor técnico e estrategista do time, e Rory Byrne, seu principal projetista. A partir daí pode-se imaginar quanto do carro e das táticas ferraristas são moldadas ao estilo do alemão. Se Schumacher acordar um dia e, por alguma razão, achar que o carro deve ter três rodas atrás e uma na frente, assim será.

Essa posição de liderança interna se reflete no dia-a-dia da equipe. Vai desde o tamanho da sala que cada piloto usa dentro do motor home até a escolha dos mecânicos e técnicos que trabalham para cada um deles. Veja-se, por exemplo, os currículos de Luca Baldisserri e Gabriele Delli Colli, respectivamente engenheiros de pista de Schumacher e Barrichello. O primeiro tem uma história na Ferrari, é um ex-militar que conduz o trabalho de boxe como um maestro, há anos no time. O segundo chegou à equipe agora, depois de passagens rápidas e obscuras por Minardi, Sauber e Jordan.

Não há, por assim dizer, diferença de equipamento para Barrichello e Schumacher. Os carros são iguais, exceção feita ao GP do Brasil deste ano, em que Michael teve a F2002 e Rubens, o carro do ano passado. Não faltam ferramentas, pneus, peças, nada a um nem a outro. Equipe grande não tem pobreza. O que há, sim, é uma série de vantagens que Schumacher foi conquistando ao longo do tempo e das quais não abre mão. Carro-reserva em todas as corridas, por exemplo, mesmo que Barrichello esteja melhor no grid. Ou prioridade para fazer pit stops, ou ainda a chance de testar antes e mais soluções eletrônicas e aerodinâmicas, para dar palpite e fazer com que o carro seja construído sob medida para sua forma de pilotar.

Há outras diferenças notáveis na vida de cada um na Ferrari, porém, que escapam ao aspecto técnico e competitivo. Schumacher tem uma assessora de imprensa pessoal; Barrichello, não. Michael possui site na internet; Barrichello, não. Schumacher tem vários patrocinadores pessoais, como a Fila e a L'Oréal, além da Deutsche Vermögensberatung, uma instituição financeira que gasta os tubos para colocar seu nome impronunciável no boné do piloto; Barrichello usa apenas um pequeno logo da AMD no capacete e, no Brasil, empresa nenhuma usa sua imagem. Schumacher tem avião próprio; Barrichello faz voos de carreira ou de carona. Schumacher ganha cerca de 50 milhões de dólares por ano; Rubens, 8 milhões. Os contratos do alemão são de longo prazo, o atual terminando apenas no final de 2004; os de Barrichello precisam ser renovados ano a ano.

Na pista, a prioridade é sempre de Schumacher. Traçada sua estratégia, faz-se a de Barrichello. Se um motor, por acaso, tiver meio cavalo a mais de potência, é de Michael. Se determinada asa só pode estar disponível para um piloto, por ter sido feita às pressas, é do alemão também. Mas, tecnicamente, há mais semelhanças do que diferenças. Na hora H, ninguém sacaneia o brasileiro. Se Rubens já teve problemas em pit stops, Schumacher também já passou por vários apertos. Quebras em treinos e corridas acontecem na mesma proporção. Tirando a ordem dada a Rubens no GP da Áustria de 2001, para que cedesse o segundo lugar a Schumacher, não se pode dizer que o alemão tenha precisado tanto da ajuda do brasileiro para vencer corridas e campeonatos.

Jean Todt, o poderoso diretor esportivo da Ferrari, não esconde de ninguém que prefere Schumacher a qualquer mortal sobre a Terra. "Ele é como um filho para mim", diz o francês. Com tanta gente a admirá-lo na cúpula, não é de espantar que Michael desfrute de uma vida relativamente tranquila em relação ao piloto que tem o azar (ou a sorte, afinal trata-se da Ferrari) de ser seu companheiro de equipe. Schumacher só deixará de ser o primeiro piloto quando parar de correr. Ou quando aparecer alguém mais rápido que ele. O que convenhamos, não parece nem um pouco provável nos próximos anos.



(texto publicado na revista Quatro Rodas ano 42 - maio de 2002)

Nenhum comentário:

Postar um comentário