domingo, 18 de maio de 2014

Caindo na vida - Carlos Camargo


- Foi um tombo ridículo. Fosse dia claro e certamente teria público gargalhando da cena, com a acrobacia de braços e pernas se enrolando a um corpo já alquebrado pelo tempo. Mas era noite e chovia. E a causa não poderia ser mais prosaica. Tudo começou quando Márcia, Maísa, Cesar e eu saímos para jantar e tentar definir o roteiro da viagem a Lucélia para o casamento do Sidy. Estávamos em Santos e fomos ao Veneza, onde o Zé Luis já tinha reservado a "minha" mesa, aliás, uma vantagem de frequentador fiel é que a equipe funcional conhece os seus hábitos. No Veneza, sabem qual é a "minha" mesa, qual a carne, o ponto de cozimento, que bebo cerveja sem gelo, e gosto de polenta e mandioca crocantes. E tudo foi observado. Comemos e bebemos gostosamente, sem pressa.

A noite continuava chuvosa, levamos Maísa e Cesar ao apartamento deles. Nos despedimos e seguimos em direção ao nosso, um trajeto que dura cerca de vinte minutos. Márcia dirigindo, a chuva caindo, o limpador do para-brisa pra lá e pra cá, o cd de Miles Davis tocando, o carro andando. E a vontade de fazer xixi aumentando. "Bem, vamos ter de parar onde tiver um banheiro." - "Não dá para aguentar? Estamos chegando." - "Não, bem, não dá." - Alguns metros depois: "Ali, bem, ali tem um banheiro." - Faltavam duzentos metros para o nosso apartamento, mas não dava tempo. Ela encostou o carro perto da guia, eu desci, fechei a port, virei e comecei a andar. No chão a calçada e, separada por guia elevada, a ciclovia, outra guia e um gramado. Apenas a iluminação pública de um poste alto. E um agravante: eu uso óculos para perto e estava com eles equilibrados sobre o nariz. E chovia.

Tropecei. Não vi mais nada, apenas senti. A cabeça despegou do pescoço e saiu girando desgovernada, o nariz levou um direto do Tyson seguido de uma cotovelada na maça da face direita, o ombro direito foi atropelado por um tanque de guerra e o joelho bateu numa das guias. Tentei me levantar, mas a grama molhada dificultava os movimentos. Não havia nada no lugar, músculos, nervos, ossos, juntas, não se entendiam. Pareciam peças de videogame.

Cheguei ao banheiro, claro que molhado, afinal chovia... Olhei para o espelho e me assustei com a figura ensanguentada, suja, molhada e alquebrada olhando para mim. Lavei a cara e onde havia sangue. Sai feito bailarino bêbado em direção ao carro. Abri a porta, a luz interna acendeu e ela berrou. Queria chamar a polícia, a ambulância, me levar para o pronto socorro, queria tudo... Eu só queria ir pra casa, tomar um banho morno, me deitar, dormir e acordar bem. Ficou no querer porque foi uma noite de gemidos e estalidos dos meus pedaços tentando se reorganizar. Não consegui me livrar de ser levado ao pronto socorro e ao médico, exames, chapas, injeção, comprimidos, receitas e sermão: "Criança é ensinada e aprende a andar e se movimentar durante toda a infância, mas vocês velhos não aprendem a viver como velhos. Deveriam existir creches para idosos."

- Temos um casamento pra ir, doutor. É em Lucélia, tudo bem? - perguntou minha mulher. - "Não senhora, nada bem. A senhora me traz o seu marido neste estado e fala em viagem? O seu marido já era velho quando se arrebentou no chão, e não ficou mais moço depois disso, pelo contrário, piorou. Mande flores ou champanhe aos noivos e que eles, e o seu marido, sejam felizes. E, outra coisa, mantenha o seu velho em casa sossegado, assim ele pode fazer seu xixi num lugar conhecido e a hora que quiser, mesmo de madrugada!



(texto publicado na revista Leve & Leia nº 60 - maio de 2014)


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