sexta-feira, 30 de maio de 2014

Viver nas alturas - Ana Luiza Tieghi

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Amado e odiado pelas mulheres, o salto alto tem apelo estético, mas também preocupa ortopedistas

Acessório que divide opiniões e símbolo de elegância, o sapato com salto alto possui usuárias fiéis e está acostumado a ouvir duras críticas de médicos ortopedistas.

Já faz tempo que esse tipo de calçado tem outras funções além de oferecer alguns centímetros a mais para as mulheres. Ele é usado para melhorar a postura, dar uma aparência mais profissional, feminina, sedutora. A altura se tornou apenas um detalhe. Mas que atire a primeira pedra aquela que nunca sofreu com dores nos pés e nas pernas após passar um dia todo em cima do salto, ou desejou ter trazido uma sapatilha quando quase caiu em uma calçada com buracos. Usar salto alto é também um desafio.

História do calçado

"A história do calçado com saltos altos remonta aos tempos da Idade Média", afirma Cláudia Regina Garcia Vicentini, coordenadora do curso de Têxtil e Moda da EACH. Como conta a professora, os saltos altos eram utilizados pelos nobres para evitar que seus pés entrassem em contato com a sujeira presente nas ruas. Seus calçados eram fabricados com tecidos finos e ornamentados com pedrarias; já os camponeses, quando utilizavam sapatos, vestiam modelos feitos de materiais rústicos, como o couro. "O calçado, assim como outros tipos de adorno, era também utilizado para distinção de classes", explica.

A história comprova que os sapatos com salto alto nem sempre foram exclusividade das mulheres. A professora da EACH conta que durante os reinados de Luís XIV, XV e XVI, na França, os homens também faziam uso de saltos, embora menores, e sapatos com bordados. Isso tudo fazia parte da moda da época, que era de ostentação da riqueza. O comportamento francês foi imitado em outros países, o que popularizou o uso do salto alto. "A França ditava a moda de comportamento nas cortes europeias", afirma Cláudia.

Posteriormente, o calçado com salto alto passou a ser visto como um fetiche. A professora explica que isso se deve à "aura de altivez que configura ao corpo quando calçado e a aura de poder que está atrelado ao seu uso". Cláudia afirma ainda que a associação do salto alto à sedução está atrelada também aos materiais usados na confecção do calçado, como o couro, e ao visual do produto, como o aspecto envernizado, as amarrações e o salto fino tipo "estileto". Todos esses detalhes fazem parte do imaginário da mulher dominadora.

O salto alto pode causar dores, mas isso é um detalhe que suas usuárias fiéis preferem ignorar. É assim com Adevanir Tiago e Sandra Rodrigues, funcionárias da Superintendência de Saúde. "Quer me ver triste, me tira o salto alto", afirma Adevanir. Ela conta que utiliza o sapato para trabalhar e comparecer a eventos sociais, mas que nos finais de semana prefere optar por calçados baixos, para descansar os pés. "O salto me deixa mais elegante, corrige a postura, mexe com a aparência e o jeito de andar."

Sandra conta que usa sapatos com salto alto em qualquer situação. "Se pudesse, usaria todos os dias". Mas ela também afirma sentir dores nos pés quando faz uso do calçado, o que não a impede de continuar utilizando-o. "Acho bonito, é feminino e elegante."

Ponto de vista médico

Se a dor causada pelos saltos altos não incomoda muitas mulheres, ela chama a atenção de ortopedistas. Alexandre Leme Godoy dos Santos é especialista em pés do Instituto de Ortopedia e Traumatologia (IOT) do Hospital das Clínicas (HCFM), e conta que calçados com saltos altos e finos podem trazer problemas aos pés, tornozelos, joelhos e coluna lombar. "O uso excessivo e crônico desse perfil de calçado pode gerar repercussões negativas, como desequilíbrios musculares na musculatura do pé e tornozelo e também deformidades articulares nessa região", explica.

Adevanir afirma não sentir dores quando usa salto alto. "A única coisa que dói é minha autoestima, quando não estou usando", brinca. A funcionária explica que, além da altura do salto, é importante prestar atenção ao tipo de calçado e seu formato. "Tem que achar o sapato e a altura adequados para o seu conforto", ressalta. Ela conta preferir o modelo scarpin, que se ajusta bem aos seus pés.

Quem usa salto alto e inadequado todos os dias pode até não sentir mais dores, mas isso ocorre porque o organismo aprende a lidar com aquela nova realidade. "Existe sempre uma adaptação do corpo humano a estímulos agressivos, ocorre compensação entre diferentes grupamentos musculares, tendões e aparelhos ligamentares no sentido de minimizar a agressão", conta Godoy. Porém, após um longo período de tempo, o estresse causado pelo sapato leva a um desequilíbrio mecânico, fadiga das estruturas anatômicas e resulta em deformidades ou lesões permanentes.

Como Adevanir já sabia, o tipo de calçado influencia em suas consequências para o corpo. Sapatos com a base muito fina e saltos muito altos geram instabilidade ao caminhar, o que aumenta a possibilidade de lesões nos ligamentos e entorses, além de forçarem a musculatura para compensar a instabilidade, gerando alterações nos tendões e músculos.

Mas é possível usar salto alto sem prejudicar o corpo. Godoy afirma que a altura recomendada para o salto usado diariamente é entre 4 e 5 centímetros. Para quem acha pouco, o médico lembra que o recurso da meia pata, a plataforma localizada na parte posterior do sapato, permite aumentar proporcionalmente a altura do salto recomendada para o dia a dia. Godoy ainda conta não haver limites para a altura do salto alto em eventos sociais, pois eles são esporádicos.

Segundo o ortopedista, o uso de sapatos com salto que sigam as características adequadas pode até mesmo trazer benefícios e contribuir para o tratamento de alguns problemas frequentes nos pés. Perguntado se um calçado totalmente plano é preferível ao salto alto, Godoy afirmou que o ideal é o meio-termo, principalmente se o sapato for de uso rotineiro, como os usados durante o período de trabalho.

Criança de salto?

"Ganhar um sapato de salto alto é, para a mulher, a passagem para a vida adulta, quando deixamos de brincar com os sapatos da mãe e passamos a possuir o nosso", conta Cláudia. Segundo a professora, o salto alto possui um simbolismo de amadurecimento.

Com tanta carga emocional atrelada ao produto, não é de estranhar que a indústria de calçados e a publicidade queiram seduzir as crianças com o salto alto e a promessa da vida adulta idealizada. "A moda atual tem transformado as crianças em miniadultos", afirma Cláudia, "e isso é extremamente ruim, tanto do ponto de vista ergonômico quanto psicológico".

É comum encontrar sandálias infantis com um - nem sempre pequeno - salto alto. Como a configuração do sapato de salto não permite movimentos rápidos com segurança, as crianças que usam esse tipo de calçado se privam de correr e brincar, como deveriam fazer. "Na faixa etária pediátrica o ser humano deve ser exposto a estímulos adequados a essa idade; a antecipação dos estímulos sensitivos, emocionais, educacionais e de vestuário deve ser muito bem ponderada para não gerar repercussões negativas", afirma Godoy, que considera o uso do salto alto em crianças "absolutamente desnecessário".




(texto publicado na revista Espaço Aberto nº 160 - maio de 2014)








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