Depende do ponto de vista. Os médicos Carolina Batista e Heleno Paiva mostram o que não tem cabimento na série e fazem uma revelação surpreendente: o irascível especialista em diagnósticos pode até ser um exemplo para o ensino e a prática da medicina
O sucesso da série E.R. (conhecida no Brasil como Plantão Médico), além de revelar o ator George Clooney, fez renascer o fenômeno das séries médicas, um subgênero dos seriados televisivos que faz sucesso desde os anos 1960, com o pioneiro Dr. Kildare.
A partir das peripécias da equipe de E.R., na década de 90, no entanto, vivemos numa geração que, praticamente, conheceu a medicina através dos seriados médicos. Certamente, o mais famoso desses profissionais da ficção foi o Dr. Gregory House do seriado House M.D., criado pelo produtor David Shore e exibida desde 2004 nos Estados Unidos e no Brasil.
O seriado já foi o mais visto do planeta, em 2008, e segue com milhões de fãs. Mas será que a fama do dr. House é merecida? O médico de Nova Jersey é antiético e inescrupuloso, mas também inteligente e perspicaz: Dr. House é, afinal, um gênio ou um picareta?
O seriado House M.D. tem como protagonista Dr. Gregory House, que lidera uma equipe de diagnóstico em um hospital universitário nos Estados Unidos, o fictício Princeton-Plainsboro Teaching Hospital. Apesar de o seriado ter variado personagens e situações ao longo dos anos, cada um dos quase 180 episódios tem em geral a mesma fórmula: começa com o caso clínico de um paciente com sintomas estranhos e cuja doença já foi investigada por vários médicos, sem que nenhum diagnóstico tenha sido alcançado.
É aí que entram o Dr. House e sua equipe médica para desvendar o caso apresentado. Todavia, os episódios sempre mostram uma sequência de tentativas e falhas em diagnosticar e tratar o paciente adequadamente. Somente no final, já em um momento crítico, House consegue desvendar o caso, como que através de uma epifania. Um exemplo famoso dessas epifanias é o episódio em que House, ao ver a calcinha vermelha da acompanhante de um paciente, tem o flash de que a doença deve ser amiloidose (cujo diagnóstico é feito através de uma biopsia com coloração vermelho do Congo).
À primeira vista, House é um médico genial: estudou em uma faculdade de medicina renomada, tem duas especialidades (infectologia e nefrologia), lidera uma equipe de excelentes médicos em um hospital universitário, possui um conhecimento enciclopédico sobre as patologias e é admirado por seus pares devido ao seu brilhantismo em fazer diagnósticos. Entretanto, tem uma péssima relação médico-paciente, não respeita os colegas, não cumpre a carga horária exigida em seu trabalho e é invariavelmente arrogante. Isso faz do Dr. House um picareta, ou, no mínimo, um mal médico?
Totalmente antiético
"Todo mundo mente" é uma das frases mais famosas do Dr. House. Mas a verdade é que todos mentem para House porque ele não tem uma relação de confiança com ninguém, sejam eles amigos próximos, ou as pessoas sob seus cuidados profissionais. Em alguns episódios do seriado, podemos perceber que ele sequer dirige a fala ao paciente que está "investigando". No entanto, saber ouvir a história do paciente, seus sintomas e detalhes como os medicamentos que usa ou seus hábitos, por exemplo, é parte essencial do processo de diagnóstico e de uma boa relação médico-paciente.
De fato, a falta de ética de muitos dos comportamentos do Dr. House foi exageradamente explorada ao longo do seriado, sempre gerando polêmica e chamando atenção para o programa. Não há um episódio sequer em que não haja, pelo menos, um erro de conduta moral ou ética profissional. Em oito anos da série, House já foi penalizado diversas vezes através de suspensões, ameaças de demissão e processos médicos, sendo salvo pelas intervenções da diretora do hospital e pelo respeito às suas capacidades no diagnóstico. Se Dr. House exercesse a medicina no Brasil, estaria enquadrado em vários artigos do Código de Ética Médica. Decerto, não seria diferente nos Estados Unidos.
Não bastassem os problemas de ética profissional, Gregory House tem diversos problemas pessoais que são abordados no seriado: é preconceituoso, arrogante, dependente químico (do analgésico Vicodin) e tem problemas psiquiátricos que já o levaram a ser internado numa clínica. Com um pouco de inspiração vinda do personagem de Sir Arthur Conan Doyle, percebemos que House tem diversas semelhanças com Sherlock Holmes: as excentricidades, o uso de drogas, os poucos amigos e um exímio raciocínio investigativo.
Seriado, não documentário
Apesar de contar com uma equipe de consultores médicos para elaboração do roteiro e ser livremente baseado nas experiências de Lisa Sanders, uma especialista em diagnósticos e colunista do jornal New York Times - autora de Todo paciente tem uma história para contar -, o seriado é bem distante da realidade dos corredores dos hospitais. Já no episódio-piloto (exibido em 2004) percebemos os vários elementos da fórmula que se prolongaria pelas oito temporadas seguintes: uma paciente jovem é diagnosticada com neurocisticercose (doença comum no Brasil, mas rara nos EUA), mas, para chegar a esse diagnóstico, Dr. House e sua equipe invadem a casa da paciente para procurar pistas, fazem logo de início exames sofisticados (como uma ressonância magnética) e pensam nos mais variados diagnósticos (de vasculites a infecções raras).
Dr. House até eventualmente tenta, mas realmente não tem como seguir o rigor científico da medicina na vida real. Um dos fatores que o impedem é o tempo relativo de evolução de cada doença, que leva meses ou anos fora da TV, mas no seriado é acelerado para dias ou horas com o intuito de deixar a história mais dinâmica. Todavia, o aspecto do seriado que mais destoa da prática médica é a capacidade "multitarefa" da equipe médica do Dr. House.
No hospital fictício de Nova Jersey, os médicos fazem tudo: colhem sangue para exames, analisam o material no laboratório, administram a medicação. Na vida real, a medicina é tão somente mais um elo na equipe multidisciplinar de atendimento ao paciente, onde deve haver divisão de tarefas e responsabilidades. Além disso, na série, não há, na prática, limites de especialidades médicas. O mesmo médico que faz uma neurocirurgia é visto em episódios seguintes realizando uma ultrassonografia ou uma endoscopia. Haja treinamento!
Mas, provavelmente, o que mais destoa da realidade médica do seriado (principalmente no Brasil) é o fato de uma equipe de quatro médicos se dedicar a apenas um paciente de cada vez. Apesar de os casos serem de doenças raras e de difícil diagnóstico, isso não se justifica. Na prática, um médico cuida de dezenas de pacientes ao mesmo tempo. Não que essa seja a situação ideal, mas é a vida real.
Influência na educação médica
"Dr. Gregory House - Departamento de Diagnóstico Médico". Assim está escrito na porta de vidro do escritório que House voltou a ocupar nos episódios recentes da série e onde ele se reúne com sua equipe para desvendar os mais desafiadores casos clínicos. Com um quadro branco cheio de sinais e sintomas do paciente, Dr. House vai excluindo ou reforçando cada hipótese diagnóstica sugerida por sua equipe.
O que isso tem de proximidade com a vida real? Há, basicamente, três métodos para diagnosticar doenças: o reconhecimento de um padrão (que é usado em doenças óbvias, como uma gripe), o uso de critérios diagnósticos (há, para cada patologia, uma lista de sinais, sintomas e exames com quantidade mínima a ser preenchida para completar um quadro aceitável) e o diagnóstico diferencial. Este, amplamente abordado no seriado, consiste em elencar a maior quantidade possível de doenças que possam justificar o estado do paciente e depois excluir uma a uma. Nesse aspecto, não se pode negar, o seriado aborda de forma muito interessante a maneira como os médicos raciocinam e efetivamente descobrem as doenças de seus pacientes.
As reuniões de House com sua equipe não só esclarecem esse aspecto o público leigo, como também causam empatia a todo médico e estudante de medicina que assiste o seriado e lembra das mesmas reuniões de que participou no seu hospital. No contexto da medicina atual, em que os exames laboratoriais e de imagem são priorizados em relação ao raciocínio diagnóstico, Dr. House dá (finalmente!) um exemplo positivo ao ensino e à prática médica.
(texto publicado na revista Para saber e conhecer nº 33 - março de 2012)
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