sexta-feira, 30 de maio de 2014

Violências emanam de mais de uma fonte - Giovanna Gheller


Do caminho de casa para o trabalho, muitas são as situações de medo e estresse vividas; assaltos e roubos são apenas alguns dos exemplos

Dados da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São paulo mostram que, dentre todas as ocorrências policiais registradas por mês no Estado, o furto costuma ser o motivo mais presente, passando da casa das 40 mil denúncias mensais. Violência urbana é algo visto e presenciado constantemente na rotina dos cidadãos brasileiros, sendo prato cheio para telejornais vespertinos. Mas o roubo, o assalto e o furto são só alguns dos tipos de brutalidades vividas especialmente nas grandes cidades do País. Instituições prestadoras de serviço público, como hospitais e escolas, engrossam a lista de violências cometidas diariamente contra a nossa gente.

Por isso o mais adequado talvez seja falar em violências urbanas, no plural. Elas são caracterizadas por certos tipos de ato de agressão - à pessoa, ao patrimônio, a valores que são considerados relevantes para a vida em comunidade - e são típicas de aglomerados urbanos. Como explica o coordenador científico do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) e professor e diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) Sérgio Adorno, a questão do crime e da violência, sobretudo do crime contra o patrimônio, torna-se um fenômeno recorrente nas chamadas sociedades industriais, urbanizadas e com grande base demográfica. "Sociedades, portanto, em que há maior circulação e visibilidade da riqueza", diz.

A riqueza adquire outra configuração e exposição, o que torna os conflitos em torno da disputa pela propriedade muitas vezes mais acirrados. Essas disputas podem se dar por meio de lutas de classes e de movimentos sociais que reivindicam maior participação na riqueza, mas  também por meio de atos de pessoas que então agridem a propriedade alheia mediante o uso da força.

Hoje, nessa configuração das cidades sob a forma de metrópole, tem-se uma enorme variedade de manifestações de atos de violência, alguns dos quais configurados como crimes. "Vale lembrar que nem toda violência necessariamente é crime, nem todo crime também é necessariamente violento", explica Adorno.

Segundo ele, em geral, no Brasil nos últimos 40 ou 50 anos viu-se crescer em especial quatro modalidades de violência: a delinquência (crimes contra o patrimônio, contra pessoas, furtos, assaltos etc); os fatos conectados com o crime organizado (de modo geral, um grupo de pessoas tendo como finalidade desenvolver certas atividades como o comércio ilegal de drogas, o roubo de cargas ou a fraude fiscal); as graves violações de direitos humanos (linchamentos ou intervenções violentas da polícia para conter revoltas nas prisões); e, outra muito frequente, conflitos em relações interpessoais (briga de casal, no local de trabalho, briga no bar), que começaram, aproximadamente, desde a década de 1970, a envolver a morte de alguém. Esses últimos costumam estar atravessados por questões do gênero, de etnia, de disputas envolvendo até times de futebol e preferências musicais.

O psiquiatra Daniel de Barros, coordenador médico do Núcleo de Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica (Nufor) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (Ipq-HC), ainda elenca como um dos principais fatores de estresse urbano junto à violência, a circulação pela cidade e a mobilidade. "As pessoas viverem com medo de serem assaltadas, de serem mortas, de serem abordadas com violência é um fator de grande estresse", diz. O espaço que deveria ser público torna-se de medo. "Em São Paulo, não se pode andar na rua à noite sem estar o tempo todo ligado, prestando atenção."

O estresse que a técnica administrativa na Seção de Pessoal da Faculdade de Saúde Pública (FSP) Maria José Garcia Ramos passa no ônibus é dessa ordem. Ela pega um fretado de Atibaia, onde mora, até São Paulo, e diz já ter presenciado muitos casos de violência durante seu trajeto. Para ela, um ponto complicado são algumas pontes e alguns viadutos instalados ao longo da rodovia. "Passar por eles é sempre um momento tenso. Uma vez, inclusive, uma pedra foi atirada e quebrou a janela do veículo, quase feriu a passageira e não paramos imediatamente para dar atendimento por medo de ataque." Em momentos de congestionamentos, conta ter visto arrastões por meio de motos paradas nos acostamentos, prontas para receber os itens roubados dos carros parados.

Para casos como esses em que a situação psicológica da vítima é exposta, o Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina oferece, desde 1985, acompanhamento multidisciplinar por meio de seu Ambulatório de Ansiedade (Amban). São tratados adultos que, além de estresse pós-traumático, sofrem de transtornos ansiosos como síndrome do pânico, fobias, transtorno obsessivo-compulsivo, agorafobia e ansiedade generalizada ou induzida por substâncias.

Segundo Heloísa Buarque, professora do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), "situações de medo nos mostram uma coisa muito triste no Brasil, que é a degradação do espaço público".

Mas, para ela, talvez mais significativas do que as crueldades causadas por cidadãos contra cidadãos sejam exatamente as violências institucionais - aquelas de responsabilidade do Estado que nos rege.

"Além da violência urbana do assalto, do estupro, do medo de andar na rua, as cidades têm outras formas de violência que a mídia hegemônica às vezes não vê como agressão." Os problemas tidos rotineiramente no transporte público coletivo (lotação, mau funcionamento, falhas etc) são uma brutalidade com a população que dele necessita. O atendimento precário no serviço de saúde também. Só que as pessoas se acostumam com isso e param de enxergar tais fatos como violência. É tão naturalizado que aceitam, "é assim e pronto".

Uma coisa interessante é pensar no problema do próprio planejamento urbano: o que - e quem, sobretudo - é priorizado na gestão de uma cidade grande como São Paulo. Heloísa cita como amostra o Mundial de Futebol da Fifa que acontece este ano no País: começam a surgir assuntos como "vamos fechar a Radial Leste em dia de jogo", por exemplo, e isso, para ela, é uma grande violência institucional. "Como assim, 'fechar'? Só os turistas vão poder entrar? É como se as pessoas não tivessem que trabalhar, estudar, circular pela cidade."

Barros acrescenta que a mobilidade é um fator muitas vezes subestimado, mas o tempo gasto entre a casa e o trabalho e vice-versa é um dos grandes preditores de qualidade de vida - quanto mais tempo se gasta nisso, pior se vive.

Bruno Melnic Incáo é analista de assuntos administrativos na Faculdade de Saúde Pública, e faz o trajeto do Tremembé até o local de trabalho diariamente de ônibus e metrô. Uma vez por semana, opta por ir de bicicleta. "Eu uso muito os corredores de ônibus, medida legal assegurada para a segurança do ciclista, e a maior dificuldade que tenho hoje são os carros que invadem essa faixa e pressionam quem está de bicicleta. Nós conseguimos manter uma velocidade acima da do ônibus, que não acelera muito inclusive por ter paradas próximas, mas não temos quase nenhuma margem para abrir distância do carro que fura o espaço", conta.

Sorocabano há dez anos em São Paulo, Incáo ainda acredita que os cidadãos paulistanos seja, em geral, muito pacientes diante da quantidade de situações possivelmente estressantes que vivem. "Outra situação complicada no meu dia a dia é o desembarque na estação de metrô da Luz. As pessoas que entram por último no trem ficam paradas em frente às portas porque o trem está lotado, e aí, na hora de descer, você não consegue se deslocar até a saída antes que a porta feche. Ficam pessoas empurrando para sair e empurrando para entrar." Diz, ainda, que sente bastante diferença em relação ao tempo gasto de locomoção em sua cidade natal, em que percorria um trajeto em no máximo meia hora. Em São Paulo, tanto de transporte público quanto de bicicleta, percorre os 17 quilômetros até a Avenida Doutor Arnaldo em uma hora e vinte minutos.

Durante o mês de março, ainda, o transporte coletivo voltou ao foco não diretamente por suas falhas ou superlotação, mas pelos assédios sexuais que ocorreram quase que em sequência dentro deles. Para o psiquiatra Daniel de Barros, fenômenos assim são oriundos de  três principais causas: a lotação do veículo coletivo público (quanto mais gente, mais chance de acontecer); as pessoas estarem mais conscientes sobre seus direitos (conforme a sociedade amadurece, começa a reclamar mais, sabe que é crime, denuncia etc); e a reunião de "abusadores" em grupos de redes sociais ("embora isso não seja suficiente para transformar um não-abusados em abusador, é mais um elemento que aumenta a probabilidade de o comportamento acontecer"). Nenhum desses princípios é a causa de tal comportamento, mas são fatores de risco à medida que tornam mais provável que aconteça.

Sobre isso, vale ressaltar que, desde 2009, os artigos 213, sobre estupro, e 214, sobre atentado violento ao pudor, foram unidos. Agora já é considerado estupro "constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso", não sendo necessário o ato em si, nem também sendo algo exclusivo do homem para a mulher.

A advogada e professora de Direito Penal da Faculdade de Direito (FD) Janaína Conceição Paschoal considera que essa mudança tenha piorado a situação. "Porque quando se falava em estupro, você sabia exatamente o que estava sendo falado. Para fazer pesquisa, para se ter os dados de quantas pessoas foram estupradas em uma determinada cidade e assim fazer políticas públicas de prevenção, é necessário ter informações precisas. E para ter dados confiáveis, os critérios também têm que ser confiáveis." Segundo ela, quando se tem uma lei que chama de estupro coisas de gravidades bem diferentes, não se tem esses dados confiáveis nem se pode desenvolver políticas que sejam boas o suficiente.

Mas, para o bem ou para o mal, as pessoas se acostumam na vida cotidiana com essas agressões constantes, que viram parte da rotina. É inevitável que se acostumem. "Ao mesmo tempo, no entanto, é legítimo que queiram transformar também. É importante que tenha alguém que perceba 'opa, precisamos de melhores condições de circulação, de acesso à saúde'. São demandas que me parecem muito legítimas", diz Heloísa, professora da FFLCH.

Ela acredita que o compasso de uma cidade pode moldar bastante seus moradores. "A gente acaba estabelecendo uma rotina que tem a ver com o contexto em que estamos mesmo. O ritmo urbano rege também no sentido de deixar as pessoas alertas e temerosas quanto a possíveis intempéries. Ainda que não necessariamente aceitável, é comum que exista quem ande com uma "carteira falsa" na bolsa, ou então, mais frequente ainda, que uma mãe não durma enquanto o filho não chegar ao lugar de destino.

Fenômenos que em nossa cultura são objeto de muita indignação, não são para outras. Em muitas sociedades modernas que têm uma certa concepção de liberdade, justiça e direitos, como acontece na brasileira, quando se começa a ter recorrentemente a percepção de que episódios de violência acontecem e não são punidos, ou não é feito nada para que sejam coibidos, começa-se, sim, a assimilar a ideia de que são naturais.

Mas é importante, para Sérgio Adorno, lembrar que violência não é um fenômeno natural. As sociedades, por meio das suas organizações e das suas culturas, lidam com ela de modo distinto. "No passado, bater em uma criança era um ato de autoridade e de prevenção contra uma educação inadequada do ponto de vista moral. Hoje, a nossa cultura moderna valoriza o respeito à integridade física, moral, psíquica e identitária dele, o que significa dizer que preserva a autonomia do outro na vontade de conduzir sua conduta", explica o diretor da FFLCH. "Tudo que limitar isto pode ser visto como violência."

Explica, ainda, que há um tempo foi feita uma pesquisa relativa aos bairros mais violentos de São Paulo. Nos lugares de classe média, onde as taxas de homicídio são mais baixas, os moradores reclamavam de haver muita violência e muito crime. Mas quando se chegava aos bairros de periferia, onde as taxas são muito mais altas, e quando se questionava quais eram os problemas mais importantes, as maiores reclamações giravam em torno da iluminação e da falta de calçamento. "Perguntávamos a essas pessoas: 'mas e violência, não tem?'. E elas respondem: 'é, tem, mas não é tão importante'." O professor acredita que, para elas, conviver com a violência era algo extremamente natural, porque viam-na acontecer, mas não viam respostas para ela. E essa naturalização da violência é um ponto preocupante também, exatamente porque pode tornar as pessoas insensíveis à dor do outro.



(texto publicado na revista Espaço Aberto nº 160 - maio de 2014)


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