Palhaçada do bem nos corredores dos hospitais
Eles são formados em Besteirologia pela Universidade Federal dos Palhacitos, possuem parafusos a menos e são completamente tantans da cabeça. Besteirol à parte, a Associação Doutores da Alegria não tem nada a ver com a terapia do riso, voluntariado ou cura sobrenatural e, nem todo mundo conhece, de fato, em que consiste o trabalho realizado, que tem uma dimensão muito maior do que se imagina.
Quando a equipe da Revista Circuito chegou na sede do grupo, no bairro de Pinheiros, em São Paulo, os olhares curiosos se perderam no colorido lúdico que o prédio (meio hospital, meio escola infantil e meio empresa) exibe. Inevitavelmente, o time procurou algum médic0-palhaço escondido por lá e, para a nossa frustração "branca", estavam todos os 28 em hospitais públicos que a Associação atende, levando um pouco de alegria para momentos difíceis da vida de muitas pessoas.
A entrevista foi realizada com o sociólogo Luis Vieira da Rocha, diretor executivo do Doutores da Alegria que, durante horas, explicou sobre a missão e os valores da organização, sem fins lucrativos, que atua no campo subjetivo e existe para melhorar as relações entre as pessoas. Luis fala com conhecimento e amor sobre a tarefa desses artistas que lidam com a morte, a doença e a decadência do Sistema Público de Saúde todos os dias.
O grupo, formado por atores profissionais contratados que estudaram a beça, por anos a fio, busca trabalhar as relações humanas, em torno da internação, por meio da arte do palhaço. "Estabelecemos uma parceria no hospital. É uma conversa com as pediatrias e com a enfermagem para que essa dupla de profissionais tenha carta branca para acessar livremente 100% do público, que são as crianças, as famílias e os profissionais da saúde", explica.
Para compartilhar conhecimento e pensamento ainda mais fora da caixinha, a Organização oferece, há 11 anos, o mais completo curso de palhaço para jovens em situação de vulnerabilidade social. Éh! Colocar um nariz de palhaço exige estudo, responsabilidade, técnica, envolvimento, pesquisa e profissionalismo. Ser um doutor da alegria não é para qualquer um não, meu irmão!
Revista Circuito: Luis, você é palhaço?
Luis Vieira da Rocha/Doutores da Alegria: Não. Sou sociólogo e sempre trabalhei como gestor de organizações. Conheci o Wellington (o fundador do Doutores da Alegria) em 1995 e já tinha uma grande admiração por seu trabalho, porque eu enxergava ali um "fora da caixa". Diferentemente das outras organizações, ele tinha o objetivo de levar a arte de qualidade e sugerir uma transformação. Doutores da Alegria ganhou o Prêmio Criança, da Fundação Abrinq, em 1997 - concedido para organizações que tinham um caráter inovador e capacidade de multiplicação. Estou no Doutores da Alegria desde 2005.
Primeiramente, gostaríamos de entender o que representa este prédio. O que funciona aqui?
Doutores da Alegria: Este prédio é a sede da Associação Doutores da Alegria, uma ONG sem fins lucrativos instituída em 1991 pelo ator e palhaço Wellington Nogueira. Nesta sede nós também faremos atendimento ao público.
Quem é esse público?
DA: Pessoas interessadas na arte do palhaço. Ou atores que atuam como palhaço, ou leigos que têm interesse no trabalho do Doutores da Alegria e em saber como é que esse arquétipo funciona no ambiente hospitalar. Recebemos aqui, também, empresários e estudantes de famílias de baixa renda que participam de um projeto de formação que dura dois anos.
Fale mais desse projeto de formação para jovens.
Chama-se Programa de Formação de Palhaços para Jovens, acontece há 11 anos e está formando a sexta turma. A cada dois anos, 25 jovens saem profissionais na arte do palhaço e munidos do DRT. O curso acontece de segunda a sexta-feira e tem duração de 1.800 horas. No terceiro ano, ajudamos o aluno a concretizar um projeto profissional de devolução desse aprendizado na sua realidade social, ou seja, esse projeto pode acontecer na realidade dele ou em outras comunidades também. No Brasil, não existe uma formação de palhaço como a nossa.
Eles se tornam palhaço profissionais, é isso?
Sim. É um curso bem completo e oferece a oportunidade de formar um empreendedor artístico. Então, este jovem, que vivem em situação de vulnerabilidade social, vem até o Doutores da Alegria e passa por um processo seletivo que mede suas habilidades e sua vontade de desenvolver um trabalho com artes cênicas. Tomamos certo cuidado para oferecer uma formação cidadã e profissional a ele, sem contaminar a figura do palhaço com a figura do palhaço que atua no hospital, portanto, ele não é formado para atuar no Doutores da Alegria. O curso nos proporciona dar um passo importante na criação de outra geração de palhaços. Hoje existem muitos cursos que formam palhaços de hospital, sendo que, na verdade, o palhaço tem uma formação ampla e escolhe onde quer atuar: hospital, presídio, circo, entre outros. O artista adapta a linguagem. Formamos o palhaço e deixamos que ele escolha seu próprio caminho.
E o que é necessário para ser um palhaço do Doutores da Alegria?
O Doutores da Alegria é um grupo profissional no qual o ator é especializado, possui registro e já escolheu ser um palhaço - ou estudá-lo - antes de chegar até nós. Ele não decide ser palhaço aqui. Geralmente, esse ator já integra uma companhia ou possui uma companhia própria. Eles se inscrevem, passam pelo processo seletivo, que é uma oficina de três etapas, e a última delas acontece dentro do hospital. A gente brinca que quem escolhe se ele vai ou não integrar nosso grupo é a criança. Às vezes, o ator tem uma bagagem enorme, é maravilhoso no palco, foi excelente na oficina, mas chega ao hospital e a coisa não rola. Enfim, passando no processo, ele é formado aqui mesmo. Existe todo um sistema de tutoria - a gente brinca, assim como na Medicina, que existe o residente 0, o residente 1 e por aí vai. Em São Paulo, essa formação acontece no Hospital Universitário da USP, e o novato é sempre acompanhado de um palhaço mais experiente.
Como é a rotina dos palhaços do Doutores da Alegria?
Estabelecemos uma parceria no hospital em que procuramos identificar a rotina do local e propomos interligar a rotina do palhaço no contexto, até que a gente potencialize o que acontece na unidade, tenha liberdade de atuação e não atrapalhe o trabalho dos médicos. É uma conversa com as pediatrias e com a enfermagem para que essa dupla de profissionais tenha carta branca para acessar livremente 100% do público, que são as crianças, as famílias e os profissionais da saúde. As visitas acontecem às segundas e quartas-feiras e às terças e quintas-feiras, ou seja, dois dias na semana por hospital, sendo de até seis horas por dia a presença da dupla. O compromisso deles é acessar 100% do público naquele dia. O palhaço tem um hall de valores bem estabelecidos, baseados na solidariedade e no trabalho em conjunto, a partir da permissão da criança.
Explique como essa permissão acontece.
Não levamos nada pronto. Nossos artistas têm uma profissão bastante sólida. São muitos exercícios, desenvolvimento de habilidades e pesquisa. Essa bagagem fica guardada para ser utilizada num momento correto. A ideia, ali, é estabelecer uma relação com a criança, com o profissional de saúde e com a família, a partir da técnica do palhaço e do improviso, mas que coloque, principalmente, a criança numa situação diferente da internação, que é a de autocontrole da sua dignidade. A internação coloca a criança numa situação passiva. Ela não queria estar lá e não sabe o que vai acontecer; sempre existe um próximo passo desconhecido e, muitas vezes, dolorido, e o palhaço vai reverter essa situação e deixará que ela comande esse vínculo. Primeiramente, ele se apresenta como um médico, e isso é um trato muito importante.
Vocês procuram os hospitais ou eles procuram o Doutores da Alegria? Como acontece esse contato?
Os dois. Lá no começo, o Wellington batalhava para o hospital entender esta proposta. Hoje, os hospitais procuram o Doutores da Alegria. O primeiro critério que observamos é que, se o hospital é público, opera o Sistema Único de Saúde e é referência em alguma ou várias especialidades. Este último quesito otimiza o nosso trabalho, porque atingimos moradores de diversos bairros e até de diferentes cidades em um único encontro e contamos com a presença de residentes, ou seja, a universidade está inserida no hospital, o que é outro cenário importante. Além disso, buscamos um hospital que tenha uma gestão comprometida em avaliar conosco o impacto desses projetos artísticos permanentes dentro do hospital. Não fazemos nenhum tipo de convênio com o poder público para receber recursos do hospital. E o palhaço precisa dessa independência para atuar lá dentro, ou seja, ele está menos sujeito aos interesses da administração, da gestão.
E como vocês medem esse impacto?
O Doutores tem um histórico na avaliação desse impacto. Talvez seja a única organização com posicionamento artístico, e não filantrópico ou assistencial. Estamos longe do posicionamento da arteterapia ou de terapeutas. Às vezes, o pessoal fala sobre a terapia do riso, e o nosso trabalho não tem a ver com isso, e sim com a arte do palhaço por meio de atores qualificados,bem entregues no lugar certo e na hora certa, que geram resultados. No decorrer do tempo, avaliamos esses resultados de várias maneiras. O primeiro projeto, que até gerou um livro chamado Soluções de Palhaços, é a tese de mestrado de uma psicóloga chamada Morgana Masetti, que mostra que, depois da relação com o palhaço, a criança criou novas perspectivas. Nós não curamos a doença, mas levamos mais alegria durante o processo que a criança está enfrentando. Existe um lado saudável de qualquer situação que precisa ser preservado. Toda criança, mesmo doente, tem a predisposição de brincar, mesmo em estado terminal.
Os palhaços recebem algum apoio psicológico, já que lidam com doenças e perdas diariamente?
Sexta-feira é o dia de treinamento, de reflexão, em que nas sedes fazemos esse trabalho de aprimoramento da pesquisa do ator, em grupo ou com especialistas que contribuem para melhorar o trabalho, como pensadores e filósofos. A melhor retaguarda que os palhaços têm é o fato de serem profissionais. São artistas muito engajados e conscientes da opção que escolheram, que é trabalhar com esta atividade artística dentro dos hospitais. Todas as sextas, nos reunimos para digerir e exteriorizar algumas situações e trabalhar artisticamente o que é vivenciado, seja por meio de textos, músicas, livros ou peças teatrais. Hoje estamos trabalhando no nível institucional, discutindo as configurações do terceiro setor, o papel das ONGs e o papel político de uma organização para melhorar o Sistema Público. O artista está mais preocupado com a realidade da saúde pública, que não evolui nunca, que não sai do lugar, que não mostra indícios de melhora.
O Doutores da Alegria está em todo o Brasil?
A atividade que a gente fez como pioneira já está acontecendo em todo o Brasil de maneira muito forte. A partir de 2007, fizemos uma revisão estratégica no Doutores da Alegria e mudamos nossa visão de como crescer. Antes, a nossa visão de desenvolvimento era ter uma unidade própria em cada capital, fazer processo de seleção de artistas locais, incluí-los como profissionais e atuar dentro dos hospitais. A partir de 2007, percebemos que não deveríamos mais fazer isso porque os hospitais já estavam populados por outros grupos de palhaços. Então criamos o "Palhaços em Rede", onde o Doutores da Alegria chamou esses grupos para uma conversa. Estamos fomentando uma rede, uma troca de experiências entre esses grupos para ajudar esses artistas a melhorar sua intervenção.
Além da rede, de que forma vocês se aproximam dos palhaços de outros estados do Brasil?
A cada dois anos, fazemos um encontro nacional de palhaços que atuam em hospitais, no qual recebemos palhaços de 14 ou mais estados; por três dias, discutimos o papel do palhaço. No último encontro, inclusive, convidamos um filósofo para falar da importância da alegria como potencializadora das relações saudáveis; estamos tentando elevar a discussão para um patamar ético do que é pertinente ou não numa ação dentro dos hospitais.
Programa de formação de palhaços para jovens
- O programa é gratuito, financiado por leis de incentivo à cultura e por organizações privadas.
- Os jovens recebem uma bolsa de incentivo no valor de 450 reais para transporte e alimentação.
- 86% desses jovens, após o curso, desenvolvem projetos artísticos de autoria própria.
- 95% pretendem expandir sua formação, a maior parte deles em carreiras artísticas.
(texto publicado na Revista Circuito edição 189 - ano 15 - setembro de 2015)
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