domingo, 27 de setembro de 2015

O adeus de Oliver Sacks (colaboração de Natália Oliveira)


Em carta pública, que repercutiu no mundo todo, o médico neurologista e escritor consagrado, em estado de saúde terminal, fala sobre a vida e a morte

Era para ser uma carta de despedida, mas é um tributo à vida, singelo, comovente e, ao mesmo tempo, profundo, à altura de seu autor, Oliver Sacks, um dos neurologistas com produção literária mais significativa da contemporaneidade. Publicado no The New York Times, em fevereiro último, o texto intitulado Minha própria vida repercutiu no mundo todo. Aos 81 anos, o escritor e cientista encontra-se em estado de saúde terminal devido a um melanoma raro no olho direito, com metástase. A carta recebe o mesmo título - e é por ela inspirada - da autobiografia do filósofo escocês David Hume (1711-1776), citado por Sacks.

"Não posso fingir que não estou com medo. Mas meu sentimento predominante é de gratidão. Amei e fui amado, recebi muito e dei algo em troca; li, viajei, pensei e escrevi", registrou o médico, que luta contra a doença desde sua descoberta, em 2006. Em seu livro O Olhar da Mente (2010) conta casos de pessoas com diferentes males, a maioria oculares, e se apresenta também como paciente. No capítulo "Persistência da visão: um diário", o autor faz uma reunião de relatos cotidianos sobre sua doença, desde a percepção de sua existência - em uma ida corriqueira ao cinema -, passando pelo diagnóstico e tratamento, até a cegueira que o atingiu no olho afetado.

"É difícil estar mais separado da vida do que eu estou no presente", afirma o neurocientista. Mas, completa, ao se distanciar da vida, olhando-a "como uma paisagem", sente maior conexão com a própria existência. "Isso não quer dizer que terminei de viver. Pelo contrário, eu me sinto intensamente vivo, e quero e espero, nesse tempo que me resta, aprofundar minhas amizades, dizer adeus àqueles que amo, escrever mais, viajar se eu tiver a força, e alcançar novos níveis de entendimento e discernimento", escreveu. "Isso vai envolver audácia, clareza e, dizendo sinceramente: tentar passar as coisas a limpo com o mundo. Mas vai haver tempo, também, para um pouco de diversão (e até um pouco de  tolice)".

O médico reflete sobre sua jornada, mas em nenhum momento em tom de luto. "Estou agora com uma rápida deterioração. Sofro muito pouca dor com a minha doença; e, o que é mais estranho, nunca sofri um abatimento de ânimo. Possuo o mesmo ardor para o estudo, e a mesma alegre companhia de sempre".

Contudo, declara que não vai mais dedicar seu tempo para as notícias sobre política ou mudanças climáticas. "Isso não é indiferença, mas desprendimento - eu ainda me importo profundamente com o Oriente Médio, com o aquecimento global, com a crescente desigualdade social, mas isso não é mais assunto meu; pertence ao futuro. Alegro-me quando encontro jovens talentosos - até mesmo aquele que me fez a biópsia e chegou ao diagnóstico de minha metástase. Sinto que o futuro está em boas mãos."

Doença e identidade

Falando sobre a perda dos amigos, o médico demonstra sabedoria ao lidar com a morte. "Minha geração está de saída, e sinto cada morte como uma ruptura, como se dilacerasse um pedaço de mim mesmo. Não vai haver ninguém igual a nós quando partirmos, assim como não há ninguém igual a nenhuma outra pessoa. Quando as pessoas morrem, não podem ser substituídas. Elas deixam buracos que não podem ser preenchidos, porque é o destino - o destino genético e neural - de cada ser humano ser um indivíduo único, achar seu próprio caminho, viver sua própria vida, morrer sua própria morte", escreveu.

Em entrevista ao jornal El País, em 1997, Sachs falou sobre como interpretava a relação de seus pacientes com as enfermidades que os acometiam. "Para mim é fundamental a relação que se estabelece entre doença e identidade, e a forma como a pessoa reconstrói seu mundo e sua vida a partir dessa doença". Para ele há um fenômeno de se descobrir uma vida positiva, diferente, após certos diagnósticos. "Mas não quero parecer sentimental perante a doença. Não estou recomendando que se tenha de ser cego, autista ou sofrer da síndrome de Tourette, de forma alguma, mas em cada caso surgiu uma identidade positiva após algo calamitoso. Algumas vezes, a doença pode nos ensinar o que a vida tem de valioso e nos permitir vivê-la mais intensamente".

Vivenciando sua teoria, Sacks irá deixar, além de uma obra importantíssima para a medicina e para a popularização da neurologia, uma bela mensagem de despedida. "Acima de tudo, fui um ser senciente, um animal pensante nesse planeta maravilhoso, e isso, por si só, tem sido um enorme privilégio e aventura", finaliza.



(texto publicado na revista Ser Médico nº 71 - ano XVIII -abril/maio/junho de 2015)

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