Em Número Zero, o novo romance de Umberto Eco, o professore italiano reafirma sua maestria no uso literário de uma matéria-prima peculiar, as teorias conspiratórias
Há alguns anos, Umberto Eco incorporou uma piada em suas entrevistas e aparições públicas. Segundo o professore, como Eco é chamado com carinho na Itália, o americano Dan Brown, autor do best-seller O Código Da Vinci, não existe. "Ele é um personagem do meu romance O Pêndulo de Foucault. Eu o inventei. Ele compartilha da fascinação de meus personagens pelo mundo das conspirações. Suspeito que Dan Brown nem sequer existia." Os milhões de leitores de Eco - consagrado filósofo e acadêmico italiano que em 1980 se tornou um dos maiores sucessos literários do século XX com o romance O Nome da Rosa - reconhecerão no gracejo uma verdade subjacente: Eco sempre esteve interessado em tramas que exploravam o mecanismo de funcionamento das teorias conspiratórias e o fascínio que elas exercem sobre um contingente enorme de pessoas - os leitores de Dan Brown que o digam. Em O Pêndulo de Foucault, um plano conspiratório feito um pouco por diversão sai do controle quando os personagens passam a ser perseguidos por uma sociedade secreta que os toma por detentores de um segredo dos Cavaleiros Templários. Em O Cemitério de Praga, o avô do protagonisa é um antissemita que acredita que os maçons, os templários e a seita secreta dos Illuminati estiveram por trás da Revolução Francesa. Agora, com Número Zero (Record: tradução de Ivone Benedetti; 208 páginas; 35 reais), que mal foi lançado e já surge em quinto lugar na lista de ficção de VEJA. Eco leva seu interesse pelas teorias conspiratórias para um ambiente bem diverso daquele de suas obras de ficção: a redação de um jornal de Milão, em 1992.
Ainda que deixe de lado o romance histórico ambientado em tempos e terras distantes, Número Zero não abandona o terreno da história: o ano em que transcorre a narrativa de Colonna - um tradutor, eterno candidato a escritor e jornalista por força das necessidades da vida - é um marco na recente história italiana. Em 1992, tinha início a Operação Mãos Limpas - a Operação Lava-Jato que os italianos fizeram antes dos brasileiros - que desbaratou a corrupção no coração da vida política daquele país. Sob esse pano de fundo, Colonna é contratado para coordenar uma redação de jornal peculiar. O comendador Vimercate funda o fictício jornal Amanhã com o propósito de usá-lo como instrumento contra os inimigos - qualquer semelhança entre o magnata e o ex-premiê Silvio Berlusconi não é mera coincidência. Através da cômica redação, Eco ilustra o pior do jornalismo: o servilismo a interesses políticos e econômicos escusos, o descaso para com a verdade e a informação precisa, a manipulação do leitor por meio da distorção intencional dos fatos.
É no ambiente do jornal que história, conspiração e farsa se misturam na composição paranoica de Braggadocio, o mais típico dos personagens de Eco no romance. Obcecado por teorias da conspiração, ele construíra, em sua conversas com Colonna, uma versão diferente da história italiana desde o fim da II Guerra Mundial. Caberá a ele conduzir o leitor por relatos fantasiosos - notadamente, a teoria de que o ditador italiano Benito Mussolini não morreu no conflito: teria fugido após o fim da guerra para levar uma vida oculta.
Mussolini vivo? Claro que o leitor de Eco não cairia em truque tão banal, e o romancista é ciente disso. Seus leitores não são os mesmos que acreditam nos complôs de Dan Brown. Mas serão todos os elementos da narrativa de Braggadocio só produtos de uma mente paranoica? As virtudes de Número Zero estão nessa zona indefinida, em que muito do que parece irreal se revela relato fidedigno dos fatos, e a própria história sai como uma farsante. É certo que Número Zero não se iguala aos melhores romances de Eco. Há uma queda no ritmo que o autor atribui à necessidade de reproduzir o estilo rápido do jornalismo, mas cujo resultado é discutível. Ainda assim, a marca distintiva do humor e da inventividade do professore compensa seus pecadilhos narrativos.
(texto publicado na revista Veja edição 2434 - ano 48 - nº 28 - 15 de julho de 2015)
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