sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Na toca do coelho - Renata Vomero


Prestes a completar 150 anos, "Alice no País das Maravilhas" ainda traz na escrita nonsense de Lewis Carroll diversas críticas, simbologias e interpretações que nos fazem questionar: afinal, o que está por trás dessa história?

Em um passeio de barco pelo rio Tâmisa, em 4 de julho de 1862, Charles Lutwidge Dodgson busca entreter as três filhas de Henry George Liddell, o vice-chanceler da Universidade de Oxford e decano de Christ Church. Seriam elas Lorina, Edith e Alice Liddell. As garotinhas imploram que Charles conte uma história a elas e assim ele faz. Afinal, "Quem pode resistir a três traquinas pequenas?". A narrativa gira em torno da adorável - e preferida - Alice. Sim, ela mesma. Você já deve ter notado que estamos descrevendo o momento em que o inglês Lewis Carroll (1832-1898), pseudônimo adotado por Charles, criou Alice no País das Maravilhas.

Professor de matemática e com uma relação muito próxima com a lógica, Carroll foi o escritor que deu cara ao gênero nonsense. Isso porque narrou a história da garotinha que, ao entrar na toca de um coelho apressado, viu-se diante de um mundo fantástico, o País das Maravilhas.

As peripécias de Alice causaram tanto frisson nas meninas que a própria garotinha pediu a Carroll que escrevesse a história; e assim ele fez. Em 1865, foi publicada a primeira edição de As aventuras de Alice no País das Maravilhas com ilustrações de John Tenniel, o qual solicitou a retirada imediata dos exemplares das livrarias, pois estava descontente com a qualidade da impressão. No ano seguinte, foi publicada uma nova edição e, a partir dali, o sucesso de Alice foi absoluto.

Em um universo paralelo e deveras surreal, a personagem de Carroll encarou diversas situações que até hoje aguçam a curiosidade de pesquisadores e estudiosos. Afinal, o que está por trás dessa história infantil? 

A corrida dos ensopados

Prestes a comemorar seus 150 anos, a narrativa ganha vida no teatro em Alice no País das Maravilhas - O musical, em São Paulo, e exposição inédita no Brasil, trazendo o olhar do artista plástico Antonio Peticov, que se debruça sobre o enredo de Carroll há 30 anos. Alice no País de Peticov fica em cartaz do dia 9 deste mês até 3 de junho no recém-inaugurado Deco ArtClub, também na capital paulista, trazendo mais de 30 obras que retratam esse fantástico mundo. "Da mesma maneira que Mr. Dodgson deixou-se guiar por fantasia e imaginação naquela tarde de verão inglês, improvisando e inventando à medida que o barquinho deslizava sobre as águas do Tâmisa, na observação dos desenhos de Tenniel, vou sendo guiado por minha intuição/imaginação, deixando surgir imagens cujas formas propõem uma analogia com o Universo Alicinógico", comenta Peticov.

Basta uma rápida pesquisa pela internet e você verá diversas teorias em torno da história de Alice. Entre viagens causadas por efeitos de drogas até uma possível esquizofrenia, a garota não fica de fora das mais diversas possibilidades, nenhuma delas confirmada. No entanto, os mais críticos e observadores notam no texto do inglês uma fiel e afiada crítica à sociedade vitoriana da época.

"Lewis Carroll tinha angústias e dúvidas com relação a muitos fatos que transformavam sua realidade, principalmente no que tange ao futuro daquela sociedade. Ele fez críticas com relação à estrutura de poder, aos caminhos da ciência, à relação entre pessoas, que,segundo ele, caminhavam para um rumo de competição. Tinha, também, a percepção de que, naquele mundo em que viviam como em uma linha de montagem - já que, em 1860, a Inglaterra atravessava o boom da chamada Segunda Revolução Industrial -, as pessoas estavam perdendo seu senso crítico diante dos fatos presentes", revela Eduardo José Afonso, professor assistente doutor do Departamento de História da Unesp.

A obra de Lewis Carroll pode ter uma nova interpretação a cada olhar e ângulo, como ressalta Julia Teitelroit Martins, doutoranda em Literatura e Cultura pela PUC-Rio e cineasta. "Uma leitura alegórica do texto também é possível. O historiador Nicolau Sevcenko, professor de história da cultura da USP, vê em Alice uma alegoria satírica sobre a Inglaterra do período vitoriano. Então, uma leitura como a dele, que leva em conta referências históricas, amplia as possibilidades de interpretação da narrativa e de seus elementos." E ela complementa: "Se lemos o livro pela ótica do nonsense, não há mensagens por detrás dos diálogos. Ou, o nonsense é a mensagem".

Diante de diversas referências a cantigas, poemas e textos do período em que foi escrito, o livro traz sua crítica racional por meio de metáforas e alusões nos diversos diálogos e personagens da história, seja na representação da Rainha de Copas, que impunha uma autoridade rígida ao comportamento de Alice, seja no caso do Coelho Branco, personagem que carrega consigo um relógio e sempre diz estar atrasado. "Ele nos remete a um hábito que foi criado pelos ingleses, que era a presença do relógio nas fábricas, sempre lembrando aos operários que o tempo era importante. Esta forma de controle da produção tornou-se 'hábito' para todos os ingleses. Essa era, ou é, uma das grandes críticas de Carroll diante daquela sociedade que vinha se configurando com 'hábitos' que condicionavam os homens a comportamentos iguais", ressalta José Afonso.

O tempo, aliás, tomou grande corpo na obra de Lewis Carroll. Momentos à frente, Alice se encontra com o Chapeleiro Maluco e a lebre presos em um chá da tarde. Isso porque o chapeleiro brigou com o tempo, o qual parou às 18h. "O tempo não é uma coisa para se perder, matar ou correr contra ele, mas alguém com quem negociar. Se ficarmos amigos dele, podemos fazer o que quiser com ele! Se na Inglaterra de sua época Carroll vivia em uma sociedade presa às engrenagens de rituais repetitivos e limitantes, hoje somos desafiados mais do que nunca para que possamos ser amigos do tempo, em busca de criar vidas mais criativas e livres!", enfatiza Adriana Peliano, artista plástica que ilustra a edição comemorativa de 150 anos de Alice no País das Maravilhas - com lançamento em breve pela editora Zahar -, além de ser fundadora da Sociedade Lewis Carroll Brasil e  tradutora da obra do autor.

Um chá maluco

Do outro lado da moeda, ou do jardim encantado de Alice, deparamos com um universo onírico cheio de representações subjetivas da história. Lewis Carroll traz uma linguagem com simbologias que representam as inquietações do inconsciente de Alice, do próprio autor e também de nós mesmos. Lembrando que, ao fim do livro, Alice desperta e descobre que tudo não passou de um sonho - sim, contamos o fim da história.

Assim, podemos inferir outras teorias acerca dos personagens e diálogos da narrativa. Olhando por este ângulo, o coelho pode ganhar uma diferente representação na trama, sendo aquele responsável por revelar o novo a Alice; o Gato Inglês pode trazer à menina a possibilidade de ter uma postura despreocupada diante da vida. Já o encontro com a Lagarta toma uma proporção única diante dos mistérios do inconsciente. "A lagarta, em minha opinião, uma das personagens mais interessantes da obra, pode representar a busca por conhecimento, as dúvidas e a transformação do ser humano. No diálogo, ela pergunta quem Alice é. Como resposta, a garota explica que sabia quem ela era até o momento em que acordou naquela manhã. Assim, percebemos a angústia da menina frente às modificações e transformações que está enfrentando em seu desenvolvimento e o quanto este processo pode ser confuso", comenta Débora Diegues, psicóloga clínica, pesquisadora e mestranda em Distúrbios do Desenvolvimento pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

É a lagarta, também, quem ensina Alice a forma de ficar no tamanho que mais convier. Um problema que ela enfrenta durante a narrativa: ora está pequena demais, ora muito grande. Estas transformações de Alice também trazem uma significação importante à história. "Uma das leituras possíveis é ver esta mudança de tamanho como muitas vezes sentimo-nos durante a vida: ora pequenos, frente a situações desconhecidas ou quando temos de enfrentar algo que pode trazer temor, por exemplo. Ora grandes quando nos sentimos satisfeitos", revela Suely Gevertz, professora do setor de Psicoterapia do Departamento de Psiquiatria da Unifesp. Esse vaivém no tamanho de Alice também pode representar a fase que a garota vive, já que ela está entre a infância e a pré-adolescência. "Elementos como as poções que encolhem e os mágicos bolos que a fazem ficar maior poderiam representar as questões envolvidas no processo de crescimento/desenvolvimento, em que existem mudanças significativas no corpo e que podem trazer desconforto", pontua Débora.

O despertar de Alice

Cento e cinquenta anos depois, ainda mantemos em nossa mente a imagem da garota que se abriu a um mundo novo e se deixou absorver diante das novas possibilidades que o País das Maravilhas trazia. "Precisamos cada dia mais de Alice, sempre a nos lembrar que somos humanos e que o mundo é feito por nós e por nossa ação como sujeitos da história, e não objetos descartáveis que aparecem, são consumidos e, depois, em condições de sucata, são reciclados", destaca Eduardo José Afonso, que conclui: "A principal mensagem, para mim, é a de liberdade, pois aquele que tem consciência de si e de seus atos, aquele que pensa sua existência e reflete suas ações é um ser livre".



(texto publicado na Revista da Cultura edição 94 - maio de 2015)

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