domingo, 4 de dezembro de 2016

Dádiva de santos - Mariana Zylberkan


A surpreendente cura de um paciente do Litoral Sul que garantiu a canonização de Madre Teresa, agendada para o dia 4

A Praça de São Pedro, no Vaticano, será tomada no primeiro domingo de setembro, 4, por fiéis católicos de diferentes países para assistir à cerimônia de canonização de Madre Teresa de Calcutá, que morreu em 1997, aos 87 anos. Foi um milagre brasileiro. O processo teve início com o caso de uma cura incomum ocorrida na cidade de Santos, em dezembro de 2008. O engenheiro Marcílio Haddad Andrino sofria de uma grave infecção cerebral. Internado no São Lucas, hospital particular do município do Litoral Sul, entrou em coma e chegou a receber a extrema-unção de um padre. Para a surpresa dos médicos, que iam fazer uma cirurgia de emergência para tentar salvá-lo, Andrino despertou do coma na mesa de operação. O procedimento acabou sendo cancelado e, um mês depois, o paciente recebeu alta. Prestes a completar 43 anos, ele leva uma vida normal, com poucas sequelas (perdeu um pouco da visão periférica e caminha com alguma dificuldade).

Na segunda passada, 22, o engenheiro embarcou para Roma, acompanhado da família (a mulher, Fernanda Rocha, 42, e os filhos, Mariana, 6, e Murilo, 4). Na cerimônia de canonização, Andrino levará até Jorge Mario Bergoglio o relicário com um pequeno pedaço de osso retirado do corpo de Madre Teresa, o qual simboliza a capacidade dela de interceder para amenizar o sofrimento das pessoas. A preciosidade vai fazer parte do acervo de objetos venerados da Basílica de São Pedro. O evento deve atrair uma multidão para o Vaticano. Desde a beatificação da mãe dos pobres, ocorrida em 2003 no pontificado de João Paulo II, a adoração pela figura de Madre Teresa cresce no mundo inteiro.

Nascido em Santos, Andrino mudou-se de lá em 2007 para trabalhar como pesquisador do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi), no Rio de Janeiro. Em outubro de 2008, recém-casado, aproveitou as férias do novo emprego para rever parentes no Litoral Sul e relaxar um pouco, depois de meses sofrendo de um mal-estar que lhe causava tonturas e dificuldade para manter o equilíbrio. A razão disso permanecia um mistério, mesmo depois de várias consultas. Durante a estada em Santos, o engenheiro teve uma convulsão forte e perdeu a consciência. Levado ao Hospital São Lucas, os médicos diagnosticaram o problema: focos de infecção bacteriana na massa encefálica. Por ser transplantado (recebeu um rim de um irmão aos 19), seu organismo perdeu parte da capacidade de imunidade e uma ferida na perna teria sido a porta de entrada das bactérias.

Ele tinha nada menos que oito abscessos no cérebro, como são chamados esses focos de infecção. O estágio da doença era quatro vezes mais avançado que o caso mais grave encontrado na literatura médica mundial até então. Mesmo depois de semanas de administração de antibióticos e corticoides, o problema não regredia. Como se isso não bastasse, surgiu um quadro de hidrocefalia, que ocorre quando o organismo, em um processo de defesa natural contra as bactérias, passa a produzir mais líquor, o líquido responsável por regular a temperatura do cérebro e protegê-lo em caso de impactos. Quando isso acontece, o paciente entra em coma, pois o fluído comprime o cérebro contra a caixa craniana. Em casos assim, é preciso fazer uma arriscadíssima cirurgia de emergência para tentar drenar o excesso da substância.

Ao ver Andrino perder a consciência e entrar na UTI por causa da hidrocefalia, a família chamou um padre para lhe dar a extrema-unção. Horas antes da operação, em busca de conforto espiritual, sua mulher foi à paróquia onde eles se casaram, a mesma que costumava frequentar para rezar. Lá, encontrou o padre Elmiran Ferreira Santos. Ele conta que havia acabado de ministrar uma missa na sede santista da Congregação das Missionárias da Caridade, irmandade criada por Madre Teresa em 1950 e atualmente com sedes ao redor do mundo. Em seu bolso, o religioso lembra que carregava o santinho recebido naquela tarde das mãos das freiras. Atrás da foto plastificada da beata havia uma oração e um pedaço de pano, peça que, segundo as devotas, fazia parte do hábito da mãe dos pobres. "Acalmei Fernanda e rezamos juntos, pedindo a intercessão da Madre Teresa", conta o pároco.

Enquanto isso, no hospital, Andrino era encaminhado ao centro cirúrgico. O neurocirurgião João Luis Cabral Júnior deu início aos preparativos do procedimento. Como o cateter usado nesse tipo de intervenção é caro, o próprio médico é quem fica responsável por buscar o apetrecho no armário de insumos. Quando voltou, cerca de dez minutos depois, deparou com o paciente acordado e sentado na maca perguntando onde estava. "Eu expliquei que ele seria operado porque estava com um problema muito grave, mas, já que havia despertado, eu iria abortar o trabalho", revela Cabral Júnior. O médico o submeteu a uma tomografia que comprovou a regressão da hidrocefalia, apesar de os focos de infecção ainda estarem presentes. O doente voltou para um quarto normal do hospital e o tratamento à base de antibióticos continuou. Dessa vez, porém, os sinais de recuperação começaram a aparecer. Passados 45 dias, segundo Cabral, ele recebeu alta. "Não creio em milagres, mas acredito no poder da medicina", afirma o neurocirurgião. "Vi tudo como uma recuperação de um quadro grave graças ao protocolo indicado para a patologia", diz. Ele reconhece, no entanto, a surpresa com a cura. "Sobreviver a dois abscessos no cérebro é quase impossível. A oito, então, nunca havia acontecido", completa o especialista, que apresentou o caso em um congresso nacional da especialidade realizado há cerca de três anos diante de colegas incrédulos.

O padre Elmiran observou de perto a recuperação do engenheiro e, alguns meses depois da remissão da doença, pediu ajuda a membros da comunidade católica da região para comunicar o possível milagre ao Vaticano. Demorou mais de sete anos para a Santa Sé resolver estudar o caso. Em junho do ano passado, uma comitiva enviada pelo papa Francisco desembarcou em Santos para aprofundar a investigação. Durante quatro dias, sob a coordenação do padre Caetano Rizzi, especialista em direito canônico, foi organizado o chamado Tribunal sobre a Causa da Bem-Aventurada Teresa de Calcutá na diocese do município. O objetivo era reunir testemunhos e documentos capazes de comprovar o "fato  extraordinário".

A visita foi mantida sob sigilo e seus participantes eram obrigados a jurar perante a Bíblia manter segredo de tudo o que foi visto e falado. Além de Andrino e sua mulher, prestaram depoimento o padre Elmiran e três médicos, incluindo Cabral Júnior. Em um primeiro momento, o neurologista resistiu aos insistentes pedidos das freiras devotas de Madre Teresa para participar e relatar o  tratamento no hospital. "Eu me neguei de imediato. Disse que não ia violar o sigilo médico. Para isso, elas teriam de obter autorização da família e do Conselho Federal de Medicina. Algum tempo depois, elas voltaram com os avais, e mesmo assim eu resisti." Outro apelo, esse mais íntimo, o convenceu a ceder. O especialista é seguidor da wicca, uma religião pagã que acredita em magia. O médico, portanto, tem uma crença bem distante dos preceitos católicos. Mas seu pai, João Luís Cabral, que havia sido padre jesuíta antes de se casar, convenceu-o a mudar de ideia. "Só decidi participar pelo amor que tenho a ele", conta. Na Itália, os documentos foram analisados por peritos. A comunicação oficial de que a igreja reconhecia o milagre ocorreu em 17 de dezembro do ano passado, quando o papa assinou decreto de sua autenticidade, no mesmo dia em que completou 70 anos.

A coincidência das datas não é vista como mero casuísmo pelos teólogos. Essa canonização é considerada emblemática para o pontificado de Bergoglio, voltado para a caridade e a aproximação dos pobres com a Igreja, valores muito presentes na trajetória de Madre Teresa. Ela ficou famosa por acolher miseráveis das ruas de Calcutá, na Índia. No lado oposto da corrente dos fiéis que acreditam em sua santidade, há críticos dedicados a provar uma faceta nada celestial da mulher que se tornou símbolo de bondade e vencedora do Prêmio Nobel da Paz em 1979. A voz mais ouvida nesse sentido é a do jornalista britânico radicado nos Estados Unidos, Christopher Hitchens, morto em 2011. É de sua autoria o documentário Anjo do Inferno, no qual aparecem depoimentos acusando a congregação de Madre Teresa de maltratar os moribundos, relegando-os a esperar pela morte em ambientes sem higiene e sem tratamento adequado.

A repercussão do programa, no entanto, não conseguiu abalar o prestígio da religiosa, tampouco a admiração em torno da figura dela. Sua canonização deve aumentar o número de seguidores dentro e fora da Igreja. No Brasil, há uma pequena parcela da congregação fundada por Madre Teresa, que se estima ter representação em 133 países e mais de 4 500 membros. Os fiéis se concentram em torno das casas religiosas Missionárias da Caridade, onde vivem freiras que usam o hábito branco com listras azuis, igual ao adotado pela beata. Um desses endereços fica em Cotia, na região metropolitana de São Paulo.

A transformação da mãe dos pobres em santa é algo tão importante para a Igreja que o engenheiro de Santos figurou na última quinta-feira (25) como convidado de honra de um renomado congresso cristão realizado no balneário italiano de Rimini, famoso por ser a cidade natal do cineasta Federico Fellini. A palestra de Andrino sobre a própria trajetória de vida durou cerca de meia hora e encerrou a programação. Muito aplaudido, ele contou que hoje em dia tem uma rotina normal. Ao sair do hospital, precisou de sessões de fisioterapia para recuperar os movimentos do lado esquerdo do corpo, que ficaram comprometidos por causa da convulsão. Seis meses depois, estava apto a retomar o trabalho no Inpi. No processo de recuperação, ouviu dos médicos que teria apenas 1% de chance de se tornar pai. o problema era uma consequência da grande carga de medicamentos que tomou no hospital. Em 2009, para a surpresa do casal, Fernanda descobriu que estava grávida de Mariana. "Recebi duas graças: a cura e o nascimento dos meus dois filhos", afirma Andrino. "Sempre que olho para eles eu vejo a Madre Teresa."



(texto publicado na revista Veja São Paulo de 31 de agosto de 2016)

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