Quero propor uma linha de pensamento que aponte como nossa organização social é similar à obesidade: quero dizer que se nossa sociedade fosse um corpo, ele sofreria de obesidade.
O século XXI trouxe à tona o ápice da produção especializada e com ela a sensação de que podemos realizar todos os nossos desejos. A oferta de produtos aumenta cada vez mais e os desejos e nossas necessidades também. Para cada desejo ou necessidade tem o produto que promete a realização total, não somente em termos do produto em si, mas para muito além dele, já que através da propaganda o produto trará elementos absolutamente fantásticos à vida daquele que o consumir. As pessoas acostumadas a terem todas suas necessidades rapidamente satisfeitas pelas ofertas do mercado se tornam mimadas e egoístas. De um cenário de falta de controle, que é a condição humana, passamos a outro de supercontrole. Temos, ainda que falsamente, a sensação de que a carência foi superada. Buscamos alucinadamente fazer o que desejamos, não admitimos pensar algo e realizar outra coisa, não permitimos mais a ideia de uma limitação de nossa capacidade em realizar as coisas.
A indústria corre atrás de nichos de novas necessidades permitindo momentaneamente uma sensação onipotente de satisfação de todos os nossos desejos. Pensemos no modelo do crediário - podemos adquirir mercadorias sem ter o lastro para tal. Há uma dilatação temporal "magica" que permite obter-se algo mesmo sem ter condições para isso. Na França não é possível fazer compras parceladas; cheques pré-datados não existem e o cartão tem que ser pago à vista!
Quer sejam as centenas de canais de TV que operam as 24 h do dia, (houve um tempo em que as TVs encerravam sua programação por volta das 02:00 h), o que acarreta muita quantidade de programas e baixa qualidade, quer seja o café sem cafeína, a bebida zero que não engorda, quem sabe também inventarão um pão de queijo sem queijo... são exemplos de que dispomos de um sistema onde o desejo raramente encontra barreiras, porém especificamente nestes casos, assim como nos produtos que imitam ser o que não são, (piso que imita madeira ou mármore, etc) há um esvaziamento da essência bem propícia para a mercadoria tomar o lugar com promessas de preenchimento que nunca ocorrerão. Querer consumir apenas peito de frango pode parecer muito normal, mas se perde a noção de que o frango tem outras partes, que para produzir o frango há um tempo, etc... Novamente há uma dilatação "magica", o frango não é mais um frango, só existem peitos de frango, sem falar da crueldade com a qual são produzidos. Trata-se de uma distorção e mutilação do todo.
Ao passarmos para a fusão do desejo e de sua pseudo realização, sem mesmo notar que são duas instâncias, nos tornamos seres estranhos. Frágeis e muito vinculados/dependentes a uma demanda cada vez mais excessiva de consumo, somos tragados para uma lógica não humana, ainda que composta com elementos puramente humanos. Quando nos damos conta, estamos imersos, agora sem perceber, no mesmo dilema que buscamos superar, isto é, estamos novamente sem controle da situação. Continuamos desejando algo e realizando outro. Fomos levados e acostumados com a falsa ideia de que é possível fundir o desejar e o realizar; a mercadoria nos vicia com esta promessa. Neste contexto, será comum quantidades elevadas de obesidade, usuários compulsivos de internet e outros tipos de excessos viciantes.
Vivemos um período social de excessos, distorções, mimos, onipotência acoplado a um esvaziamento profundo do verdadeiro sentido. Este panorama é altamente favorável à obesidade. Digamos que uma pessoa, e principalmente uma criança, vivendo num ambiente com estas distorções, introjetará em si própria estes modelos - não aguentar o vazio, não tolerar a frustração, não suportar limites, nem conseguir se satisfazer. A sociedade ajuda o indivíduo a confundir fruição com consumo, e não favorece o desenvolvimento de um ser maduro, capaz de tolerar a frustração, o vazio, o conhecimento de suas verdadeiras necessidades, e com posse deste conhecimento fazer suas próprias opções.
(texto publicado na revista Leve & Leia nº 124 - ano 8 - março de 2015)
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