sábado, 12 de setembro de 2015

A saga da biblioburro: Luis Humberto Soriano - Simon Romero, de La Gloria, para o New York Times


Um aclamada instituição colombiana tem 4,8 mil livros e dez pernas

Em um ritual repetido quase todo fim de semana ao longo dos últimos dez anos no interior caribenho da Colômbia cansado de guerra, Luis Soriano juntou seus dois burricos, Alfa e Beto, em frente de casa, numa recente tarde de sábado.

Já suando debaixo do sol inclemente, ele prendeu bolsas com a palavra "Biblioburro" pintada em letras azuis no lombo dos burros e as encheu com uma eclética carga de livros destinada às pessoas que vivem nas pequenas vilas das redondezas. Sua seleção inclui Anaconda, a fábula animal do escritor uruguaio Horacio Quiroga que lembra O Livro da Floresta, de Rudyard Kipling; alguns livros ilustrados da Time-Life (sobre o Japão, a Escandinávia e as Antilhas); e o Dicionário da Real Academia de Língua Espanhola.

"Comecei com 70 volumes e agora tenho uma coleção de mais de 4,8 mil", diz Soriano, de 36 anos, um professor de escola primária que vive numa pequena casa com a mulher e três filhos, com livros empilhados até o teto. "Era uma necessidade, daí virou uma obrigação, e depois um hábito", explica, apertando os olhos para enxergar as colinas ondulando no horizonte. "Agora", diz ele, "é uma instituição."

A Biblioburro do senhor Soriano é, a rigor, uma pequena instituição: um homem e dois burros. Ele a criou pela simples crença de que o ato de levar livros a quem não os tem pode, de alguma maneira, melhorar a empobrecida região e, talvez, a Colômbia. Com isso Soriano se tornou o cidadão mais conhecido de La Gloria, uma vila que parece ainda mais distante dos ritmos do mundo do que Aracataca, a cidade que inspirou o épico Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, outro dos nativos da região.

Ao contrário de García Márquez, que vive na Cidade do México, Soriano nunca viajou para fora da Colômbia - mas continua se dedicando a levar a seu povo um toque do mundo do exterior. Seu projeto ganhou elogios dos especialistas em alfabetização do país e é tema de um documentário do cineasta colombiano Carlos Rendón Zipaguata.

A ideia surgiu, diz ele, depois que testemunhou, como professor iniciante, o poder transformador da leitura em seus alunos, que nasceram em meio a um conflito ainda mais intenso do que quando ele era criança. A violência de grupos criminosos era tão grande quando ele era pequeno que seus pais o mandaram para viver com a avó na cidade próxima de Valledupar, perto da fronteira venezuelana. Voltou com 16 anos, um diploma de segundo grau e um emprego como professor de alfabetização de crianças.

Na época em que chegou à casa dos 20 a longa guerra interna da Colômbia havia atraído grupos paramilitares para os brejos e colinas sem lei que circundam La Gloria, levando a confrontos com a guerrilha e à intimidação da população local por ambos os grupos. Foi para dentro dessa violência, que desde então diminuiu, que Soriano se aventurou com seus burros, levando consigo uns poucos livros, volumes de enciclopédia e romances de sua pequena biblioteca pessoal.

Um grande avanço ocorreu muitos anos atrás, quando ele ouviu no rádio trechos de um romance, A Balada de Maria Abdala, de Juan Gossaín, um jornalista e escritor colombiano. Soriano escreveu a Gossaín pedindo-lhe que enviasse uma cópia do livro para a Biblioburro. Depois que Gossaín divulgou detalhes do projeto de Soriano em seu programa de rádio, doações de livros começaram a chover de todo o país. Uma instituição financeira local, a Cajamag, financiou a construção de uma pequena biblioteca ao lado da casa dele, mas o projeto continua inacabado por falta de fundos.

Sobra pouco dinheiro para esses luxos de seu salário de professor, de U$ 350 por mês. O orçamento da família já é tão apertado que ele e sua mulher abriram um pequeno restaurante, La Cosa Política, dois anos atrás, para ajudar nos gastos. Mesmo entre a clientela do restaurante, basicamente trabalhadores rurais e caminhoneiros com pouca educação formal, Soriano vê, detrás de seus óculos, bibliófilos potenciais. Na parede acima das mesas, servidas de carne grelhada e banana frita, ele prega páginas do Hoy Diário, o jornal da região, e incita discussões sobre os eventos entre seus clientes.

"Nós podemos levar a discussão só até um certo ponto, claro", diz ele, referindo-se à ameaça de retaliação por parte dos grupos paramilitares, que efetivamente derrotaram a guerrilha naquela parte do norte da Colômbia. "Aprendi que se eu interessar só uma pessoa em ler uma notícia - digamos, sobre o aumento do preço do arroz - isso já é um passo adiante."

Essas vitórias fazem Soriano ir em frente, a despeito dos desafios para manter a Biblioburro funcionando. Ele quebrou a perna esquerda numa queda de um de seus burros em julho. Agora manca. E alguns de seus leitores gostam tanto dos livros que tomam emprestados e não os devolvem. Dois livros que sumiram não faz muito tempo: um manual de educação sexual ilustrado e uma cópia de Como Água para Chocolate, romance de Laura Esquivel sobre comida e amor em uma família mexicana.

E há perigos inerentes ao embrenhar-se nas terras ao redor de La Gloria. Dois anos atrás, diz Soriano, ladrões o assaltaram quando ele cruzava um rio, descobriram que ele quase não tinha dinheiro e o amarraram a uma árvore. Eles roubaram um item de sua sacola de livros: Brida, a história de uma garota irlandesa em busca do conhecimento, do escritor brasileiro Paulo Coelho. "Por alguma razão Paulo Coelho está no topo da lista de favoritos de todo o mundo", diz Soriano, escondendo uma careta na sombra de seu chapéu vueltiao, o chapéu de caubói de trançado complicado, tão popular no interior da Colômbia.

Numa viagem neste mês pelas sulcadas colinas, onde cerca de 300 pessoas regularmente pegam emprestado livros, ele se lembrou de uma visita à Biblioteca Nacional, na capital, Bogotá, onde ficou impressionado pela imensa coleção presente no edifício, assim como pelo seu estilo art déco."Me senti tão comum em Bogotá", diz Soriano. "Meu lugar é aqui."

Às vezes, na paisagem remota pontuada de árvores de guayacán, é difícil saber se o homem ou os bichos estão no controle. Uma vez Soriano perdeu a paciência tentando convencer seus burros teimosos a cruzar um riacho. Mesmo assim é evidente por que ele faz o que faz. No vilarejo de El Brasil, Ingrid Ospina, de 18 anos, folheia uma cópia de Margarita, do nicaraguense Ruben Darío. Seleciona um dos trechos e começa a ler em voz alta.

E segue, caminho acima,
Pela lua e mais além.
Mas o mal é que ia
Sem permissão do papai

"Isso é tão bonito, mestre", diz a jovem ao professor. "Quando o senhor vai voltar?"



(texto publicado na Revista da Semana edição 69 - ano 2 - nº 42 - 30 de outubro de 2008)

Nenhum comentário:

Postar um comentário