quinta-feira, 10 de setembro de 2015

"Fui contrabandeado para a Europa" - Jacyara Azevedo


A angustiante viagem de 12 dias do sírio Moutassem Yazbek em um barco que partiu da Turquia para a Itália, em uma travessia que já matou 1,5 mil pessoas somente este ano

Até onde o desespero pode levar alguém? Existe um limite? Enquanto você lê estas palavras, há milhares de pessoas tentando atravessar o inquieto Mar Mediterrâneo, amontoadas em botes infláveis ou em porões de navios cargueiros. São jovens, outros nem tanto, gestantes, idosos e crianças que passam dias à mercê de ondas furiosas, quase sem comida ou água. Estão fugindo de seus países de origem, contrabandeados, escolhendo arriscar a vida em busca de esperança. Muitos fracassam. Outros têm mais sorte, como o refugiado sírio Moutassem Yazbek, que concluiu a travessia da Turquia para a Itália em dezembro de 2014, em sua segunda tentativa. E é uma rara jornada bem-sucedida. Eis sua história...

O árabe pagou 6,5 mil dólares para um contrabandista colocá-lo em uma embarcação longe o suficiente da guerra civil de seu país, que já dura quatro anos e não tem perspectiva de solução. A viagem de 12 dias, que em condições adequadas levaria apenas dois, foi uma odisseia. "Eu teria feito qualquer coisa para chegar à Europa. Por mais difícil que seja acreditar, valeram a apena o risco, os maus-tratos e o medo. Tenho uma vida melhor agora", afirmou em depoimento a CNN Moutassem, um ex-executivo de vendas corporativas de uma empresa de aluguel de carros em Dubai, Emirados Árabes Unidos. Atualmente ele está na Alemanha, em Illingen, município da região do Sarre, onde ajuda voluntariamente outros recém-chegados da Síria.

Voltar para a Síria, jamais

Ano passado, Moutassem perdeu o emprego em Dubai. Seu visto de trabalho havia expirado e ele não tinha um lugar para ir. "Voltar para a Síria não era uma opção. Retornar significaria ter de matar ou morrer", ele explica. Assim, escolheu a Turquia (os sírios não precisam de visto para entrar naquele país) como ponto de parada antes de viabilizar um antigo sonho: o de chegar à Europa. Já em Istambul, procurou informações sobre o contrabando ilegal de pessoas e, sinal dos tempos, descobriu muitas páginas do gênero acessíveis via Facebook. Todas apontavam para a cidade portuária de Mersin, na fronteira sul da Turquia, como o local de partida das embarcações rumo à Itália. No hotel onde estava hospedado, conheceu um conterrâneo que planejava partir dentro de alguns dias. O novo amigo indicou-lhe um contrabandista. "Acertadas as condições de pagamento, o homem me disse para estar pronto. A qualquer momento eu receberia uma ligação para partir." Recebeu, poucos dias depois. Era noite e começava a jornada.

Ele perdeu tudo

Cerca de 100 homens e mulheres em cinco ônibus foram levados para um ponto de contrabando, distante de Mersin. Depois, todos tiveram de caminhar na escuridão por meio de fazendas de plantação de laranja, para evitar serem descobertos pela polícia. Moutassem andou por 30 minutos ao lado de gente como uma senhora e seus dois filhos. "Ela tinha muita dificuldade para seguir o grupo e foi informada que, se não caminhasse mais rápido, os barcos iriam embora sem eles", relembra. O plano era colocar os fugitivos em três barquinhos em direção ao navio principal. "Qualquer pessoa com um passado, mas sem nenhum futuro, seria capaz de fazer coisas insanas", justifica Moutassem, que esperou mais três dias no meio do oceano, já em águas internacionais, até receber outros dois grupos de fugitivos. No quarto dia, um total de 300 pessoas partiram. "Não havia como voltar atrás", diz. Oito horas depois, entretanto, o motor da embarcação quebrou e as ondas começaram a empurrá-la em direção à Chipre, ilha situada ao Sul da Turquia, até bater em rochedo e ficar preso. O grupo foi resgatado por um navio da guarda costeira e deportado de volta à Turquia - foram fichados e liberados mais tarde. "Eu já tinha perdido tudo e sonhava em ser tratado com dignidade. Decidi arriscar de novo, mesmo sabendo que aquela loucura muitas vezes termina em tragédia, cheia de infelizes sem nome empilhados uns sobre os outros", confessa Moutassem.

Renascimento

Em apenas 48 horas, ele recebeu uma nova chamada para o já conhecido ponto de contrabando. Dessa vez, encontrou um navio de carga, maior, talvez com 85 metros de comprimento. Esperou cinco dias até formarem o novo grupo, com 391 passageiros (todos refugiados de diferentes cidades da Síria - em 2014, foram 70 mil sírios atravessando o Mediterrâneo). A etapa seguinte foi inesquecível: "Estávamos no porão, não havia colchões, ondas gigantes invadiam o teto e o chão de metal. Passamos cinco dias sem comida e com pouca água. O 'banheiro' era um pneu velho de carro coberto por um pedaço de pano'. No 11º dia, o barco chegou a uma distância de 200 milhas da costa sul da Itália. "Guias" da embarcação tentaram alertar as autoridades italianas de sua presença, alegando que tinham sido deixados à deriva, sem um capitão ou uma tripulação (não era uma inverdade, pois o piloto não possuía registro).

Um navio islandês resgatou Moutassem junto de seus companheiros de viagem. "Os refugiados agitavam as mãos como crianças (...). Foi como um renascimento", lembra Moutassem que pisou em terra firme na província de Catânia, Sicília. Encaminhado para um campo de refugiados, o sírio ouviu que teria de fornecer suas impressões digitais para, então, ser simplesmente liberado. Seguiu para Milão com dois outros sírios. O trio passou por Paris e decidiu fincar bandeira na Alemanha.

Moutassem está em Illingen e tocando a vida. Diz a amigos e familiares em seu Facebook que está bem e sinaliza na rede social seu novo local de moradia. Compartilha vídeos como o de Angelina Jolie em favor dos sírios nas Nações Unidas e cenas de um seriado que gosta: Big Bang Theory. Por enquanto, sua vida de refugiado discretamente "escondido" é essa, até que consiga um visto oficial e realize o sonho de viver tranquilamente na Europa, como tantos outros.



(texto publicado na revista Contigo nº 2069 - 14 de maio de 2015)

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