quarta-feira, 2 de setembro de 2015

O amigo oculto de Einstein


Em 1904, quando trabalhava no Escritório Federal Suíço de Patentes, em Berna, e ruminava a revolucionária ideia da Relatividade, Albert Einstein tinha o costume de dar longos e sossegados passeios com um colega de repartição, um engenheiro e matemático de afiada inteligência chamado Michele Angelo Besso. Suíço de nascimento, de uma família de judeus italianos, Besso não entrou para a história da ciência. Mas foi com ele - e ao que tudo indica só com ele - que o maior cientista do século discutiu sua Teoria Especial da Relatividade, antes de publicá-la em 1905. Einstein, no final do trabalho, escreveu um agradecimento a Besso pelas "várias e valiosas sugestões" que dele recebeu - pena que, transmitidas de boca, não se saiba jamais quem foram.

Einstein conheceu Besso, seis anos mais velho, por volta de 1897, quando ambos estudavam na Politécnica de Zurique e frequentavam os saraus musicais da família Hünis, em cuja casa Einstein exercitava-se no violino. A amizade entre eles era intensa - e só terminaria com a morte dos dois, com poucas semanas de intervalo, em 1955. Foi também uma amizade peculiar, à distância, pois a partir de 1911 eles praticamente não mais se viram, morando em cidades, países e, enfim, continentes diferentes. O vínculo se manteve, porém, por escrito: Einstein e Besso, de fato, escreveram um ao outro pelo menos 110 cartas. A torrencial correspondência, recolhida nos anos 60, lança uma luz preciosa sobre a face menos conhecida da vida e do temperamento de Einstein.

A amizade dos dois transbordava, de longe, ciência e trabalho. Foi Albert quem apresentou a Michele Angelo aquela que viria a ser sua mulher pela vida toda, Anna Barbara Winteler. Einstein, ele próprio, tinha se casado em 1903 com Mileva Marić, de quem se divorciaria em 1919. Mas, no início, a vida conjugal parecia idílica ao cientista. Certa vez, Besso recebeu do amigo em Trieste, Itália uma carta reveladora. "Minha mulher e eu levamos uma vida extremamente agradável", deleitava-se Einstein. "Ela se ocupa perfeitamente de tudo, cozinha muito bem e está sempre alegre." O tom íntimo da correspondência era uma raridade no caso de Einstein, pouco dado a amizades próximas e ao que chamava com derrisão "o meramente pessoal".

Nas cartas a Besso, em meio a parágrafos dedicados à ciência, Einstein abria o coração. Como em 1917, ao tratar dos problemas psicológicos de seu filho Eduard, nascido em 1910 e que viria a falecer em 1965 num hospital psiquiátrico. "Não é de esperar que algum dia ele se torne um homem como os outros", escreve Einstein. "Quem sabe, talvez fosse melhor se ele tivesse deixado este mundo antes de ter conhecido a vida. Pela primeira vez, me sinto responsável e me recrimino." Em 1926, quatro anos depois de ganhar o Prêmio Nobel, o cientista soube que o diretor do Escritório de Patentes, onde Besso continuava a trabalhar, queria demiti-lo. Escreveu-lhe então: "O forte de Besso reside na sua incomum inteligência. (...) Sua fraqueza é seu insuficiente espírito de decisão. Disso resultou uma situação trágica: um empregado que eu qualificaria de insubstituível dá a impressão de ser ineficiente". É claro que depois disso ninguém ousou substituir Michele Angelo Besso.

Sua morte, em março de 1955, ensejou uma das cartas mais pessoais de Einstein. Dirigida ao filho e à irmã do amigo, confidencia: "O que eu mais admirava em Michele era o fato de ter sido capaz de viver tantos anos com uma mulher, não só em paz como também em constante união, algo em relação a que eu fracassei duas vezes. (...) Ao deixar esse estranho mundo, ele mais uma vez se antecipou a mim. Isso não quer dizer nada. Para aqueles de nós que acreditam na Física, esta separação entre passado, presente e futuro é só uma ilusão, embora  tenaz".



(texto publicado na revista Super Interessante nº 6 - ano 3 - junho de 1989)

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