sábado, 12 de setembro de 2015

O cotidiano secreto do Dr. Morte no Egito - Souad Mekhennet e Nicholas Kulish (The New York Times)


Como o criminoso nazista mais procurado do mundo iludiu seus perseguidores

Mesmo em idade avançada, o alto e imponente alemão conhecido como Tarek Hussein Farid mantinha a disciplina de andar 20 quilômetros por dia pelas ruas movimentadas da capital egípcia, o Cairo. Ele caminhava rumo à mesquita al-Azhar, onde havia se convertido ao Islã, ou para o café J. Groppi, onde costumava encomendar bolos de chocolate que enviava aos amigos e balas para seus filhos, que o chamavam de tio Tarek. Amigos no Egito se lembram dele como um entusiasmado fotógrafo amador. Andava sempre com uma câmera na amão, mas não gostava de ser fotografado. E com motivo: tio Tarek era, an verdade, Aribert Ferdinand Heim, membro das SS armadas de Hitler, a temível tropa de elite do nazismo. Heim trabalhou como médico nos campos de concentração de Buchewald, Sachsenhausen e Mauthausen.

Foi atrás dos muros cinzentos de Mauthausen, em sua nativa Áustria, que Heim, médico por formação, cometeu atrocidades contra centenas de judeus e outros prisioneiros que lhe renderam o apelido de Dr. Morte e o status do criminoso nazista mais procurado do mundo pelo Centro Simon Wiesenthal. Ele era acusado de realizar cirurgias em prisioneiros sem anestesia, remover órgãos de pessoas saudáveis, deixando-as morrer sem assistência na mesa de operações, e de injetar gasolina no coração de alguns pacientes. Depois de viver abaixo do radar dos caçadores de nazistas por mais de uma década ao fim da Segunda Guerra - passou a maior parte do tempo exercendo a medicina em Baden-Baden, onde se casou e teve dois filhos -, Heim fugiu dos investigadores quando o cerco se fechou em 1962. Seu esconderijo, assim como sua morte em 1992, eram ignorados até agora.

Investigadores em Israel e Alemanha achavam que Heim estava escondido na América do Sul, possivelmente no Chile. Uma mala empoeirada, praticamente esquecida em um depósito no Cairo, guarda arquivos que contam a história de sua vida e morte no Egito. O New York Times e o canal de televisão alemão ZDF tiveram acesso ao conteúdo graças à família Doma, proprietária do hotel onde Heim morava no Cairo. A mala contém um arquivo de páginas amareladas, envelopes ainda selados com as cartas de Heim, resultados de testes médicos, seus registros financeiros e um artigo anotado de uma revista alemã sobre seu julgamento à revelia. Também há desenhos de soldados e trens feitos pelos filhos que ele deixara na Alemanha. Alguns documentos estão com o nome de Heim, outros com o de Farid, como um pedido para o visto de residência egípcio. Sob o nome de Tarek Hussein Farid, trazia a data de nascimento de 28 de junho de 1914 e o mesmo lugar de nascimento, Radkersburg, na Áustria, do Heim.

Uma cópia da certidão de óbito obtida das autoridades egípcias confirma que o homem chamado Tarek Hussein Farid morreu em 1992. "Tarek Hussein Farid era o nome que o meu pai adotou quando se converteu ao Islã", disse Rüdiger Heim, de 53 anos. Em entrevista na cidade de Baden-Baden, Rüdiger admitiu publicamente pela primeira vez que esteve no Egito ao lado do pai quando este morreu de câncer no reto. "Foi durante as Olimpíadas de Barcelona", disse Rüdiger, que é alto e tem o rosto longo como o do pai. "Havia uma televisão no quarto e ele assistia aos Jogos. Estava sofrendo dores horríveis."

Heim morreu em 10 de agosto de 1992, segundo seu filho e a certidão de óbito. Rüdiger disse que soube do paradeiro do pai por meio de sua tia, mas não o procurou porque não queria causar problemas aos amigos do pai no Egito. Conforme diminuía o número de criminosos nazistas ainda vivos, a busca por Heim crescia em importância.

Sua vida no Cairo joga luz sobre a história recente, e ainda desconhecida, do Oriente Médio. Até que a política mudasse, ex-nazistas eram bem recebidos no Egito nos anos do pós-guerra. Segundo Rüdiger, seu pai lhe contou que outros oficiais nazistas viviam no país. Mesmo assim é um mistério como conseguiu driblar por tanto tempo seus perseguidores enquanto recebia dinheiro da Europa, principalmente de sua irmã Herta Barth, e se correspondia com amigos e com parentes em longas cartas. "O mundo árabe era um lugar ainda mais seguro para ex-nazistas que a América Latina", diz Efraim Zuroff, diretor do Centro Simon Wiesenthal em Israel.

Heim foi preso uma única vez logo depois da Segunda Guerra, pelo Exército americano na Alemanha. Mas foi libertado antes que um ex-colega do campo de Mauthausen, Josef Kohl, descrevesse seus crimes. "Heim tinha o hábito de olhar na boca dos presos para ver se a dentição deles era perfeita", disse Kohl em uma entrevista para a imprensa alemã. "Se fosse o caso, ele matava o prisioneiro com uma injeção, arrancava sua cabeça, deixava-a cozinhando por horas até que a carne se soltasse e preparava o crânio como lembrança para os amigos."

Investigadores descobriram que Heim foi cuidadoso durante o período pós-guerra. O ex-nazista, um jogador talentoso de hóquei no gelo, manteve-se longe de fotos quando sua equipe posou para um retrato, mesmo depois de ter vencido o campeonato alemão. Ele também alugava um apartamento em Berlim, o que lhe rendeu uma boa quantia durante anos. Na sede da polícia de Baden-Württemberg, em Stuttgart, pequenos alfinetes espetam um mapa-múndi, marcando os lugares onde foram relatadas pistas de Heim. Os investigadores checaram mais de 240 pistas desde 1962. Certa vez chegaram perto de seu esconderijo no Egito. "Tivemos informações de que Heim trabalhava como médico da polícia entre 1967 e o começo dos anos 1970", afirma Joachim Schäck, chefe da unidade de fugitivos da polícia. "Mas elas eram falsas."

Rüdiger revela que o pai deixou a Alemanha dirigindo-se para a França e a Espanha antes de cruzar o Marrocos e acabar no Egito. "Por pouco não fui apanhado. Foi coincidência a polícia ter entrado em minha casa quando eu estava viajando", escreveu Heim em uma carta à Der Spiegel, depois que a revista alemã publicou matéria sobre seus crimes de guerra em 1979. Não ficou claro se ele chegou a enviar a carta, que foi encontrada entre seus arquivos. Nela ele também acusa Simon Wiesenthal, que passou por Mauthausen, como o culpado "por inventar essas atrocidades".

Em sua vida no Cairo Heim formou laços com alguns vizinhos, inclusive com a família Dorna, que dirigia o hotel Kasr al Madina, onde ele viveu nos últimos dez anos de vida. Mahmoud Doma, cujo pai é dono do estabelecimento, diz que Heim falava árabe, inglês e francês, além do alemão. Ele também estudava o Corão. Doma, de 38 anos, ficou emocionado ao se lembrar do homem que conhecia como tio Tarek.  "Ele era como um pai. Ele me amava e o sentimento era recíproco." Ele se lembra de como Tarek comprou raquetes e instalou uma rede de tênis na cobertura do hotel, onde ele e seus irmãos jogavam com o muçulmano alemão até mesmo durante a noite. Mas em 1990 começaram os primeiros sintomas de câncer. Depois de sua morte, Rüdiger tentou cumprir o desejo do pai de doar o corpo dele para a ciência, uma tarefa difícil em um país muçulmano. Junto com Doma ele rodou o Cairo em uma van com o corpo do médico nazista, que havia sido lavado e enrolado em um lençol branco segundo a tradição muçulmana. Doma disse que eles subornaram o funcionário de um hospital para levar o corpo, mas autoridades egípcias descobriram a tramoia e Heim foi enterrado em uma cova comum, anonimamente. Como o lugar exato de seu enterro é ignorado, não é possível, ainda, fechar o caso.



(texto publicado na Revista da Semana edição 74 - ano 3 - nº 5 - 12 de fevereiro de 2009)

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