sábado, 12 de setembro de 2015

Salva por um anjo - Margo Pfeiff


Arlene Ursel, uma cabeleireira loira e mignon da cidade de Winnipeg, no Canadá, olhou o relógio: 9h55. Ótimo, pensou, vou chegar na hora. Naquela manhã ela seguia em seu Neon 1998 para oeste de Winnipeg pela estrada Yellowhead, rumo à pequena cidade de Minnedosa, onde encontraria alguns amigos e passaria o dia pescando no Parque Nacional Riding Mountain.

Arlene, 44 anos, atlética e em boa forma, amava a natureza. Naquele dia, 14 de agosto de 2003, a previsão do tempo era de sol e temperatura de 32º C. Como tenho sorte de ter essa vida, pensou, desacelerando o carro ao ver placas que indicavam um trecho de estrada em obras.

Cerca de um quilômetro mais adiante, também indo para oeste, Kim Chicoine, motorista de um caminhão carregado de refrigerantes e água mineral, parou ao lado de uma funcionária que sinalizava com bandeiras na área em obras.

Enquanto esperava pela permissão para seguir em frente, o motorista de 41 anos e abundantes e desgrenhados cabelos castanhos, abaixou seu vidro. "Tem alguma garrafa gelada?", brincou a funcionária com as bandeiras.

Ao lado de Kim estava Craig Smith, 24 anos, estudante de informática que iniciava seu primeiro dia como ajudante de caminhão, trabalho que fazia durante as férias.

Subitamente, Kim ouviu pneus cantando, uma série de estrondos e o som de metal arrastando no asfalto. Ele olhou no retrovisor e viu um caminhão-tanque corcovear, capotar e, virado de lado, vir deslizando pela estrada em sua direção, batendo nos carros e espalhando-os como se fossem brinquedos.

"Saia daqui!", gritou Kim para a moça que segurava as bandeiras. Engrenou a primeira marcha, soltou o freio de mão para absorver melhor o impacto e observou pelo espelho do lado do passageiro o caminhão-tanque deslizar pelo asfalto e finalmente parar, de lado, no meio da estrada, uns cem metros atrás de seu caminhão.

Kim viu fumaça saindo em profusão pelo outro lado do veículo, mas ainda mais chocante era a visão de uma caminhonete Dodge Caravan azul presa sob ele.

Kim saltou do caminhão. "Tem um extintor do lado do meu branco!", gritou para Craig e correu na direção do acidente, mas parou ao ver um líquido branco jorrando do caminhão acidentado. Seria combustível?

Ou algum produto químico perigoso? Cuidadosamente, foi até a cabine, que estava virada de lado na vala à margem da estrada. O motorista se achava deitado no banco do passageiro, a parte de cima do corpo saindo pelo pára-brisa, sangue pingando do rosto.

- Qual a sua carga? - perguntou Kim, enquanto puxava o homem através do vidro quebrado.

- Leite - respondeu o motorista.

- Graças a Deus - disse Kim, e deitou no chão o motorista, que estava tonto mas não muito machucado, e correu em direção da Caravan presa sob o caminhão-tanque.

Para sua surpresa, não havia ninguém lá dentro. Um homem apareceu ao seu lado com o olhar chocado e distante, um celular pendendo da mão flácida.

Não acredito que ele tenha saído vivo, pensou Kim.

- Você ligou para a Emergência? - perguntou.

O homem fez um gesto afirmativo com a cabeça.

Kim deu a volta pela parte de trás do caminhão e parou abruptamente ao ver a extensão da carnificina: quatro carros destruídos espalhados pela estrada. O silêncio no local era lúgubre.

Ele se dirigiu para os veículos mais próximos, um Impala verde e uma van marrom que haviam batido um no outro. O motorista da van conseguira abrir sua porta, mas o casal no sedã não tivera tanta sorte.

- Meu marido está preso - disse a mulher.

- Mas vocês dois estão bem? - perguntou Kim.

Ela fez que sim, e Kim correu na direção de um Honda Accord prata que parara no acostamento. O carro fora atingido por trás, e a mala dobrara para a frente, prendendo um casal idoso nos bancos dianteiros.

- Meu marido está sangrando! - gritou a mulher.

Kim viu o ferimento profundo no rosto do homem e disse à mulher que eles precisavam parar o sangramento de alguma forma. Ela tirou toalhas de papel do porta-luvas e formou um chumaço para pressionar contra o ferimento. Enquanto ela fazia isso, Kim olhou ansiosamente para o carro seguinte, que parecia ter sido partido ao meio.

- Você está OK? - perguntou à mulher. - Porque tem um outro carro que...

Ela assentiu, interrompendo-o:

- Vamos ficar bem. Pode ir.

Kim respirou fundo para ganhar forças enquanto se aproximava do Sunfire vermelho com placas da província de Alberta. A parte de trás fora completamente achatada. Um casal estava desacordado nos bancos da frente. Olhando o banco traseiro, Kim recuou com horror. Ashton Colbourne, 13 anos, estava espremido de encontro às costas do banco onde se achava sua mãe. Era possível perceber que o menino estava morto, mas então Kim viu um movimento.

Um aterrorizado filhote de cachorro saiu de sob o banco do motorista e subiu no colo do menino, pondo-se a lamber-lhe o rosto num esforço desesperado para acordá-lo. Lágrimas rolaram pelo rosto de Kim enquanto se afastava. O pai recobrava e perdia a consciência, e Kim tentou se controlar para assegurar aos pais que a ajuda estava chegando. Não pode ficar pior do que está, pensou. Então ouviu alguém chamando seu nome.

Carregando o extintor de incêndio do caminhão deles, Craig Smith correra até o outro lado do caminhão-tanque, onde estava a fonte da fumaça, uma massa fumegante de metal retorcido que fora arrastada pelo chassi do caminhão. Então se dera conta de que aquilo era um carro atingido pela frente, por trás e por cima, com a parte de baixo presa na lama da vala, as rodas traseiras empurradas para cima do banco de trás. Para seu horror, Craig viu um par de olhos espiando-o de dentro da bola de metal.

"Kim"!, gritou ele. "Tem uma mulher presa neste carro!" E, freneticamente, esvaziou naquele emaranhado de ferragens um segundo extintor, que pegara no caminhão-tanque.

O que aconteceu? Esse foi o primeiro pensamento de Arlene Ursel, quando recobrou a consciência e empurrou para longe o air bag vazio. Com o volante preso de encontro ao peito, ela se esforçava para respirar. Quando virou a cabeça a fim de olhar para fora, fixou os olhos diretamente nos de um jovem que esguichava em seu carro a fumaça verde de um extintor de incêndio.

Arlene havia se transformado numa bola. Inclinada para a frente pelo banco que a empurrara, com o queixo ao lado da batata da perna esquerda e a perna direita dobrada para trás, estava presa num pequeno espaço entre a porta do motorista e os restos destruídos do lado do passageiro, com a roda dianteira esquerda quase em seu colo.

Kim ajoelhou-se e se espremeu entre as ferragens. Surpreendentemente, Arlene não parecia ter sofrido sequer um arranhão.

- Você está bem, querida? - perguntou ele.

Ela assentiu.

- Sente alguma dor?

- Não - respondeu calmamente. - Estou bem.

Kim assentiu.

- Não se preocupe. Vamos tirar você daí.

Arlene parecia estável.

- Já volto - disse Kim, e correu até o Sunfire vermelho onde estava o casal muito machucado. Tentou abrir a porta do motorista, sem sucesso, e se voltou para a janela do passageiro, que fora arrancada. A mãe parecia tonta, então Kim sustentou-lhe a cabeça. Estava com medo de movê-los.

- Kim!

Ele olhou para o carro de Arlene. Durante o minuto em que se afastara, o automóvel começara a pegar fogo por causa da gasolina que estava vazando do tanque, e ambos os pneus de trás já queimavam como tochas. Craig e um pequeno grupo de funcionários da estrada Manitoba, que haviam acabado de chegar, estavam tentando, em vão, debelar as chamas usando pequenos extintores.

Kim correu até lá e se arrastou para o lado de Arlene.

- Por favor, não me deixe sozinha - pediu ela baixinho, enquanto o fogo surgia do banco, embaixo de seu braço, e da porta, ao seu lado.

Kim pôs o braço direito dela em volta de seu pescoço e enfiou a mão dentro do carro o máximo que pôde.

- Você tem de empurrar - disse para Arlene quando ouviu o sinistro e estridente ruído da expansão do tanque de gasolina, que havia sido empurrado para cima e para trás do banco dela.

Arlene tentou se soltar, mas balançou a cabeça.

- Estou presa.

O calor se tornou tão intenso que Kim teve de se afastar. No momento em que se distanciou, ouviu um som sibilante, e em seguida uma coluna de fumaça negra e chamas surgiram na parte de trás do carro.

- O tanque de gasolina vai explodir! - gritou Craig.

Os dois homens se olharam sem saber o que fazer. Todos os extintores disponíveis estavam vazios. Então, Kim teve uma ideia:

- Temos água no caminhão!

Sem dizer uma única palavra, os dois correram para o caminhão e cada um pegou uma caixa de água mineral. Kim abriu a sua, pegou duas garrafas de um litro e meio e engatinhou para o lado de Arlene, deitando-se ao lado dela para verter o máximo de água que pudesse sob o painel em chamas.

O ar foi tomado pelo mau cheiro de plástico e leite queimados, enquanto Arlene observava Kim, freneticamente, esvaziando garrafa após garrafa em volta do banco, que logo voltava a queimar, por causa do combustível proveniente do tanque quebrado.

Ela não conseguia ver-lhe o rosto, só a silhueta de seus longos cabelos encaracolados. Não estava com medo. Ele vai me tirar daqui, tinha certeza. Sentia-se consolada por ele tê-la chamado de "querida". Kim não estava tão certo, porém. Seu hobby era corrida de stock cars, e seu maior medo era morrer queimado dentro de um automóvel. No entanto, tinha de deixar o terror de lado. Ela não vai morrer queimada, prometeu a si mesmo. Não enquanto eu estiver aqui! 

Um grupo se formou para ajudar - tirando as tampas das garrafas e dando-as as Kim, duas de cada vez. Algumas pessoas encontraram pás e jogaram lama nos pneus em chamas. Enquanto extinguia o fogo que ia aparecendo, Kim conversava com Arlene, perguntando seu nome e onde ela morava.

- Fale onde surgir mais calor, que eu jogo água no lugar - ele disse.

- Não consigo sentir minhas pernas - Arlene informou. - Estão dormentes.

Quando Kim viu chegarem caminhões do Departamento de Bombeiros Voluntários de Minnedosa, sentiu-se inundado de alívio. "Você vai sair daqui logo, logo", prometeu a Arlene antes de se afastar.

Os bombeiros prenderam a parte da frente do carro de Arlene ao chassi do caminhão-tanque e fixaram o guincho do veículo de resgate na parte de trás. Gradativamente, abriram o Neon, mas, à medida que o oxigênio entrava nas ferragens, as chamas surgiam. Os bombeiros correram para extingui-las.

Quando o carro foi aberto ao meio, o som estridente do metal fez com que Arlene rangesse os dentes. Os bombeiros arrancaram o teto, mas não conseguiram tirar o volante das costelas dela. Então prenderam outro guincho para levantar o volante, e finalmente Arlene foi retirada de sua gaiola em chamas.

Graças a Deus saí dali, pensou ela, sentindo o ar fresco e o sol no rosto enquanto seus salvadores a levavam para a ambulância.

Seis veículos foram destruídos no acidente e, embora algumas pessoas tenham saído gravemente feridas, apenas o jovem Ashton Colbourne morreu.

Mais tarde, quando viu os restos do carro de Arlene, Kim percebeu que o veículo estava todo negro por causa do fogo, a não ser o banco onde ela estivera. Apenas ele não havia sido tocado pelas chamas. Quando foi ao hospital visitar Arlene, que quebrara duas costelas e sofrera um trauma na medula espinhal, os dois se deram as mãos e conversaram durante três horas. E se tornaram amigos.


Kim Chicoine e Craig Smith foram ambos indicados para receber uma medalha de bravura.





(texto publicado na revista Seleções - junho de 2005)

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