quinta-feira, 10 de setembro de 2015

A tradição por testemunha - J. A. Dias Lopes


Radicada desde a Idade Média no Vêneto, na Itália, onde faz bom vinho e ótima comida, só agora a família de Dante Alighieri, o autor de A Divina Comédia, volta a ter negócios na Toscana, terra de seu glorioso ancestral

Sete séculos depois, os Alighieri estão retornando à Toscana, a região italiana da qual seu ascendente Dante, o genial autor de A Divina Comédia, teve de fugir após ser condenado à morte por razões políticas, em 1300. Desde a Idade Média vivem na localidade de Gargagnago di Valpolicella, vizinha de Verona, na Região do Vêneto. Ali o grande poeta ficou exilado durante alguns anos. Só agora os Alighieri voltam a ter negócios na Toscana. Adquiriram 75 hectares em Cinigiano, entre Val d'Orcia e Montalcino, em parceria com Sandro Boscaini, presidente da Masi, um dos mais prestigiados grupos vinhateiros italianos. Já plantaram 18 hectares da uva Sangiovese e esperam ter a primeira safra em 2004.

Uma mágoa de vinte gerações os impedia de reatar com a região de origem, apesar dos acenos de títulos honoríficos chegados da  terra arrependida. A briga era, na verdade, com a cidade natal do poeta, Florença. O partido de Dante foi derrotado e ele era inimigo dos vitoriosos. Teve de passar o resto da vida foragido para escapar à execução. Converteu-se no protótipo do exilado e transmitiu seus ressentimentos à descendência. Em 1320, trocou Verona por Ravenna, na Emilia-Romanha, onde morreu e foi sepultado no ano seguinte. Apesar dos esforços seculares, os florentinos sempre tiveram dificuldades em receber os restos mortais do poeta.

Após a morte de Dante, o juiz  Pietro, um de seus três filhos, retornou a Verona e comprou, em 1353, a propriedade Casal dei Ronchi, em Gargagnago. Nela teria vivido com o pai. Até hoje a família reside ali, na antiga sede, cultivando seus 130 hectares de terras. Produz uvas, vinho, grappa, azeitonas, mel, castanhas, frutas, conservas e dois tipos de arroz, vialone nano e carnaroli. Deve ser o mais antigo vinhedo em exploração contínua do mundo. Seus tintos e brancos são agora elaborados sob a direção técnica de Sandro Boscaini, da Masi, sócia majoritária dos Alighieri e consagrada pela qualidade dos tintos, especialmente pelo Amarone della Valpolicella, seco, e o Recioto della Valpolicella, doce.

Não por acaso, o sobrenome Alighieri também se associa a esses dois vinhos famosos. No caso do Amarone, uvas lentamente "apassite", ou seja, transformadas em passa, produzem um vinho exclusivo, concentrado, complexo, equilibrado, aveludado, alcoólico e longevo. Chama-se Vaio Amaron. A Divina Comédia se compõe de 14 233 versos e está dividida em três partes: o Inferno, com 34 cantos; o Purgatório, com 33; e o Paraíso, também com 33. A forma métrica é a "terza rima". Acredita-se que o Paraíso tenha sido escrito em Casal dei Ronchi. O atual patriarca da família se chama conde Pieralvise Serego Alighieri. Os italianos o conhecem como vinhateiro, agricultor, intelectual e colecionador de antiguidades.

O sobrenome Alighieri quase desapareceu no século XVI, quando o último descendente masculino do poeta, Francesco, ingressou na vida religiosa. Mas, consciente do problema criado pelo voto de castidade que fizera, tratou de desrespeitá-lo. Convenceu uma mulher de Verona a ter um filho com ele - e foi à luta. A empreitada não teve sucesso. Do relacionamento nasceram três meninas - e nenhum menino. Após reconhecer as filhas e conceder a cada uma o dote de 1 000 ducados, Francesco redigiu seu testamento. Destinou t udo o que tinha - inclusive a parte em Casal dei Ronchi - ao primeiro filho homem da sobrinha Ginevra.



(texto publicado na revista Gula nº 120 - ano 10 - outubro 2002)

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