quinta-feira, 19 de junho de 2014

Crítica de Cinema: Queda de braço - Mario Mendes


Mesmo quem nunca viu Mary Poppins pode se deliciar com o espirituoso embate entre Emma Thompson e Tom Hanks nos bastidores do clássico de Walt Disney

Era uma vez um garoto americano que costumava ser surrado pelo pai depois de um dia inteiro com neve pelas canelas, entregando jornais de porta em porta, e uma garotinha australiana assustada e entristecida por ver seu adorado pai sucumbir à bebida e à doença. Um belo dia, muitos anos depois, os dois se encontram em Hollywood. Agora rico e poderoso, ele quer conquistar algo que ela, conhecida e respeitada, tem a oferecer mas reluta em ceder. Juntos eles farão uma jornada por uma terra encantada, repleta de aventuras e descobertas, com muita música e, claro, um final feliz. Esse poderia ser o resumo de Walt nos Bastidores de Mary Poppins (indigesto título nacional para Saving Mr. Banks, Estados Unidos/Inglaterra/Austrália, 2013), já em cartaz no país, não fosse o filme baseado em personagens e fatos reais.

Em 1961, o produtor Walt Disney (Tom Hanks) prepara uma cartada decisiva: conseguir finalmente os direitos autorais sobre um personagem que cobiçava havia mais de vinte anos - a sobrenatural babá inglesa Mary Poppins, criação da escritora P. L. Travers (Emma Thompson). Depois de sucessivas recusas em deixar que as aventuras de sua heroína fossem adaptadas para o cinema, a irascível P. L. (ambígua abreviação para Pamela Lyndon) se vê às voltas com uma casa hipotecada em Londres e a queda nas vendas de seus até então best-sellers. Em face dessa insegurança financeira, a proposta de Disney começa a parecer tentadora (cercade 100.000 dólares mais uma porcentagem da bilheteria, segundo dados da época) e, por isso, ela se abala até a Califórnia para 1) impedir que sua criação seja transformada num "desenho animado idiota" e 2) ter o direito de aprovação total e final sobre o roteiro.

É uma colisão de planetas. De um lado, a feérica engrenagem do showbiz americano, com dedicados roteiristas/compositores a serviço do produtor obcecado pela ideia de criar um musical que seja um marco em sua obra. Do outro, a sombria intransigência da dama conservadora de esnobismo vitoriano, ainda apegada ao passado, às lembranças do pai sonhador e fracassado (Colin Farrell) e à figura da tia (Rachel Griffiths) - esta, a mulher forte que chega para pôr ordem em um lar em ruínas, assim como Mary Poppins faria nos livros com a fictícia família Banks. Estabelecendo a ponte entre esses dois mundos há um motorista boa-praça (Paul Giamatti) que se incumbe de conduzir Pamela pela cidade enquanto faz as vezes de Grilo Falante e providencia a ela um oportuno choque de realidade.

Realidade, porém, nunca foi o  forte da Disney e, se Emma Thompson está deliciosamente tensa como P. L. - toda caras, bocas e sotaque metálico -, é mais difícil aceitar o "papai Walt Disney" bonachão de Tom Hanks, apesar da costumeira competência do ator. É sabido que o produtor, um dos maiores tubarões da indústria do entretenimento e uma raposa nos negócios, não primava pela simpatia nas relações com subalternos e colaboradores. Sabe-se também que o passeio com P. L. pela Disneylândia nunca aconteceu, e que a dança de sedução com a escritora cessou abruptamente, assim que ele se viu de posse dos direitos sobre a babá. Um relato mais factual, porém não menos saboroso, dessa relação está no livro Mary Poppins e Sua Criadora, da jornalista Valerie Lawson (tradução de Marilu Reis, Frederico Rimoli e Natália Petroff; Prata, 352 páginas; 49,90 reais), uma das fontes para o roteiro do filme.

Mary Poppins foi a maior conquista do final da carreira de Walt Disney (ele morreria em 1966, dois anos após a estreia do filme): ganhou cinco Oscar e lançou Julie Andrews como estrela. É o ápice dos espetáculos para a família que o produtor tanto cultivou e um favorito do público desde então. Conta como uma misteriosa babá, vinda pelos ares pendurada em um guarda-chuva, resolve o problema de um casal de irmãos negligenciados pelos pais, os atarefados sr. e sra. Banks. Tudo regado a música, dança, desenho animado e uma porção de efeitos especiais. Mas não é preciso conhecer o original para apreciar Walt nos Bastidores de Mary Poppins, já que o filme tem sua própria comédia, música e uma dupla de personagens carentes da aprovação paterna.

Quanto a P. L. Travers, ela teve uma velhice tranquila, graças ao dinheiro que sua criação lhe rendeu no cinema. Morreu aos 96 anos, em 1996. Um ano antes, ela havia autorizado a adaptação de Mary Poppins para um musical de teatro, mas com uma condição: que os irmãos Richard e Robert Sherman, os compositores do filme, não tivessem nada a ver com a produção. A palavra final, enfim, ficou com ela.




(texto publicado na revista Veja nº 2364 - 12 de março de 2014)



Mary Poppins (1964) - Trailer


The making of Mary Poppins - part 1



The making of Mary Poppins - part 2



The making of Mary Poppins - part 3



The making of Mary Poppins - part 4



The making of Mary Poppins - part 5



The making of Mary Poppins - part 6



Walt nos bastidores de Mary Poppins (2013) - trailer







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