quinta-feira, 2 de outubro de 2014

A outra menina que roubava livros - Mariana Brugger


A história da garota de 14 anos que foi responsável pela circulação de obras clandestinas no bloco 31 de Auschwitz-Birkenau, um dos piores campos de concentração nazistas

Era uma biblioteca diminuta: apenas oito livros, amassados e sem lombada, arrumados sob as tábuas soltas no chão ou escondidos embaixo das saias de uma menina judia de 14 anos, Dita Kraus. Ela se encontrava no bloco 31 do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). No pavilhão onde se concentravam as crianças prisioneiras circulavam, escondidos dos soldados da SS e sob a responsabilidade da garota tcheca, títulos como "Uma Breve História do Mundo", de H.G. Wells e "As Aventuras do Bravo Soldado Svejk", de Jaroslav Hasek. Fascinado por essa história de resistência e coragem durante a guerra, o jornalista espanhol Antonio G. Iturbe escreveu "A Biblioteca de Auschwitz", que chega agora ao País pela Editora Agir, uma ficção inspirada em fatos reais, já publicada em 11 países.

Iturbe tomou conhecimento da história de Dita em uma página do livro "A Biblioteca à Noite", de Alberto Manguel. "O fio que persegui foi a existência dos volumes clandestinos nos campo familiar de Auschwitz, na Polônia. Um livro levou a outro", conta o espanhol, em entrevista exclusiva a ISTOÉ. Os elementos ficcionais são poucos, como a inclusão do Professor Morgenstern, que o autor diz ser sua própria voz nas páginas. A opção por não fazer uma biografia tradicional de Dita, que teve o sobrenome modificado na obra, lhe deu a liberdade de valorizar o sentimento de beleza simbólica, dentro de uma realidade que nada tinha de poética.

Ao começar a pesquisar sobre a pequena biblioteca, o espanhol se deparou com outro livro, de Ota Kraus (1921-2000), marido de Dita. Acabou, assim, conseguindo fazer contato com a ex-prisioneira, hoje com 84 anos. Eles passaram a se corresponder por e-mail, apesar do inglês "péssimo" de Iturbe, mas contando com a "paciência" da senhora Dita, que mora em Israel. Marcaram encontro em Praga, lugar de onde ela saiu expulsa pelos nazistas, primeiro para o gueto de Terezín, na República Tcheca, e depois para Auschwitz, na Polônia. Forte e lúcida, a bibliotecária contou ao autor, histórias engraçadas, como a de seu primeiro beijo. "Foi em um cemitério de Praga. Os nazistas impediam as crianças e os adolescentes de brincar ou frequentar os parques públicos. Dessa forma, converteram o cemitério em um lugar para jogos e espaço de liberdade", conta. Dita parou no bloco 31 do campo de Auschwitz por equívoco, pois os internos desse local deveriam ter no máximo 13 anos. Ela, já com 14, passou a cuidar de todos. Ao chegar, o líder do grupo, Alfred (Fredy) Hirsch (1916-1944), ofereceu a ela o cargo de bibliotecária. Cabia à garota controlar o empréstimo de livros aos professores do pavilhão, além de reunir e esconder todas as obras nas inspeções diárias para que não chegasse às mãos dos oficiais nazistas. "Fredy Hirsch é um personagem que ainda não ganhou a importância histórica devida", afirma Iturbe. Hirsch suicidou-se em Auschwitz em condições suspeitas. Mesmo quase 70 anos depois da guerra, histórias como as de Dita são lições de resistência. "A vida dela é como uma janela de esperança porque, nessas situações-limite, vemos como surge o pior e o melhor da condição humana", diz o autor.



(texto publicado na revista IstoÉ nº 2334 - ano 38 - 20 de agosto de 2014)


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