quarta-feira, 22 de outubro de 2014

O preço da água - Bruno Blecher, de Cartagena (Colômbia)


"Pergunte a alguém, em qualquer lugar do mundo, qual o preço da conta de luz e ele saberá o valor exato. Mas pergunte também o preço da conta de água. Ninguém sabe, porque é tão pouco que ninguém se preocupa", diz o professor Asit K. Biswas, um dos maiores especialistas em água do mundo.

Diretor do Centro do Terceiro Mundo para o Manejo da Água, Biswas atuou no planejamento para gestão hídrica em diferentes realidades - no Canadá, na criação do Ministério do Meio Ambiente; na elaboração do Programa Ambiental da ONU; na Comissão de Água do Oriente Médio; e na assessoria de governos de 17 países. Escreveu 67 livros e mais de 600 artigos.

Encontrei Biswas no mês de outubro, em Cartagena, na Colômbia, durante o Fórum Criação do Valor Compartilhado, promovido pela Nestlé.

Globo Rural: O mundo vai chegar a 2050 com uma população de 9,2 bilhões de habitantes, 2,2 bilhões a mais que hoje. Isso vai demandar o dobro de alimentos, o que significa também maior consumo de água. Como matar a sede e a fome de toda essa população?

Asit Biswas: Podemos resolver o problema de fornecimento de água e de alimentos para 9,2 bilhões de pessoas em 2050 com uma gestão eficiente. É preciso adotar um método eficaz de planejamento e controle para gerir os recursos hídricos. Perdem-se hoje entre 40% e 60% da água limpa no mundo em conexões e vazamentos. As pessoas dizem que em muitas partes do mundo, inclusive no Brasil, a água está se tornando escassa. No Brasil, há um grande plano, a transposição do Rio São Francisco. A China está concluindo a primeira etapa de uma grande obra para levar a água do sul para o norte do país. Mas a grande questão é se são mesmo necessários esses grandes projetos de transposição. Eu acho que não. Eles estão fazendo isso porque é politicamente mais vantajoso. Transposição é muito caro. Na China, o custo será de cerca de US$ 60 bilhões para a construção de três gigantescos canais que desviarão água dos principais rios do sul para o norte árido, onde fica a populosa Pequim. No Brasil, eu não tenho nem ideia de valores.

GR: Qual é o problema na China?

Biswas: Quando a transposição estiver concluída por lá, a demanda no sul, de onde a água vem, não será como era em 1980, quando  o projeto foi pensado. A demanda vai aumentar por causa da transposição, porque vai haver menos fluxo no rio de onde a água é retirada. O segundo problema é que, quanto mais pessoas e mais atividade econômica, a poluição da água se torna mais séria. A crise está relacionada mais com a má qualidade da água que com a escassez. Eu disse aos engenheiros chineses em 1984, quando estive por lá, que eles tinham sérios problemas de contaminação e que a água que eles consideravam boa naquela época não seria boa 30 anos depois. A qualidade da água está decaindo muito, como acontece também no São Francisco, no Brasil.

GR: Por que a China e o Brasil estão apostando na transposição?

Biswas: O tema da transferência de águas costuma despertar muita paixão. Os proponentes defendem a excelência técnica do projeto e seus benefícios econômicos e para o desenvolvimento da sociedade. E os oponentes procuram mostrar que os custos sociais e ambientais são muito altos e inaceitáveis à sociedade. A questão é que muitos dos benefícios da transposição são política e economicamente vantajosos, especialmente para as construtoras. Elas recebem muito dinheiro com a transposição, então pressionam a sociedade, dizendo que o país precisa.

GR: A China poderia resolver seu problema de água sem a transposição?

Biswas: Sem dúvida. Ninguém quer confrontar a decisão política do país, mas, em dez anos, você terá o mesmo problema. De onde tirar água? Nem na China nem no Brasil as fazendas pagam pela água, como em nenhum lugar do mundo; 70% da água do planeta é usada para irrigação, que é de graça. A menos que se coloque algum tipo de pagamento para a água da agricultura, das indústrias e de uso doméstico, não haverá água suficiente. Na Índia, a água bombeada pelos fazendeiros é gratuita. Como resultado, eles bombeiam 24 horas por dia, quer precisem ou não. Se é de graça, as pessoas usam em demasia.

GR: O problema hoje não é falta de água, mas o mau gerenciamento?

Biswas: Perfeitamente. As pessoas não querem tomar decisões, colocar um preço, e assim vai haver falta de água mesmo. Se eu fosse o presidente do Brasil, diria que não tem outra solução a não ser as fazendas aceitarem pagar pela água. Em Brasília, em São Paulo, no Rio, vai haver água limpa, direto das torneiras, de ótima qualidade, 24 horas por dia, mas tem de se pagar por isso. Eu garanto que o valor da conta de água doméstica não excede 2% da renda da família, o que não significa muito. Pergunte a alguém, em qualquer lugar do mundo, qual o preço da conta de luz e ele saberá o valor exato, mas pergunte o preço da conta de água. Ninguém sabe, porque é tão pouco que ninguém se preocupa. Eu digo que a água é uma questão emocional, nós não pensamos racionalmente sobre a água. A menos que se olhe para o gerenciamento da água racionalmente, nós teremos problemas.

GR: A tecnologia não pode resolver a escassez no futuro?

Biswas: Nos próximos dez anos, vamos ter um progresso notável na ciência e na tecnologia. Hoje, 60% da população do mundo vive numa área de até 60 quilômetros da costa e essa porcentagem está aumentando em todo o mundo rapidamente. Para uso doméstico e industrial, a vantagem disso é que você consegue atender o consumo com a dessalinização da água do mar.

GR: Por que não se usa mais essa tecnologia?

Biswas: Hoje, o preço da dessalinização é alto, por causa do custo da energia. Algumas das maiores corporações privadas têm gasto milhões de dólares para descobrir como a natureza pode fazer essa dessalinização. Muitos tipos de peixe moram nas águas de rios, vão para o mar e voltam para as águas dos rios. Como um simples peixe pode dessalinizar a água do próprio corpo? Então, milhões de dólares estão sendo gastos para descobrir esse processo, para não usar energia. Tenho certeza que em dez ou 15 anos, teremos os resultados desses estudos.

GR: Como alimentar 9,2 bilhões de pessoas em 2050?

Biswas: Fala-se de um 1 bilhão de pessoas passando fome, e talvez isso não seja mencionado para não assustar. O fato é que 40% da comida produzida no mundo não alcança o consumidor. Em países como a Índia e a China, 55% dos alimentos não chegam às pessoas.

GR: É muito desperdício.

Biswas: Se, ao invés de se pensar em produzir mais comida, reduzíssemos as perdas de alimentos de 40% para 15%, isso daria 25% a mais. Atualmente, só 60% chegam ao consumidor. Se somarmos os 25%, você está aumentando significativamente a quantidade de alimentos sem usar água ou energia extra. Por exemplo: se aumentarmos a produção de arroz na Índia para o mesmo nível do Egito ou China, sem uso extra de água, vamos ter um ganho expressivo. Se a China e o Egito podem fazer, por que não a Índia?



(texto publicado na revista Globo Rural nº338 - dezembro de 2013)








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