terça-feira, 9 de junho de 2015

O ano em que virei escritor - Walcyr Carrasco


Diante do sofrimento de Tancredo, senti como minha vida pessoal era pequena

Eu nasci de oposição. Numa história nunca bem explicada, meu pai foi preso por propaganda comunista durante o governo Getúlio Vargas. Meu avô materno pregava o comunismo em pleno  governo militar, aos gritos, na pacata rua de Marília onde morávamos. Para terror de minha mãe e minha avó, claro! Mais tarde, fiz o Colégio de Aplicação da USP, então um ninho radical. Meu destino teria sido entrar para o MDB, contra o governo militar. Ou participar da fundação do PT, como tantos amigos meus. Pasmem, li um bom pedaço de O capital, de Karl Marx, e sabia de cor algumas páginas do Manifesto do Partido Comunista. Mas sempre tive duas tendências que se opunham a uma atividade política intensa. Uma, o misticismo, a religiosidade. Outra, o desejo de ser escritor. E participar de movimentos políticos exige tempo, dedicação e coragem. Inclusive, disposição para correr da cavalaria e fugir de bombas de gás lacrimogêneo, como fiz tantas vezes no governo militar.

Mas para quem vive ligado à política, ela deixa de ser um conjunto de teorias para se transformar em algo emocional. Agora, em 1985, eu chorei por um homem que não conheço: Tancredo Neves. Ele foi para o hospital justamente quando ia assumir a Presidência, logo após tantos anos de governo militar. Vivi sob a ditadura desde os 12 anos. Com Tancredo, surgiu a luz de um governo democrático. Trabalho numa revista, como jornalista. Mas não consegui me distanciar profissionalmente. Minha emoção ficou por um fio. Eu e meus colegas sofremos com essa internação. Íamos ao Hospital das Clínicas, aqui em São Paulo, não em busca de furos. Mas de notícias, as menores que fossem capazes de nos dar alguma esperança. Tancredo precisava viver. Nosso medo era que os militares não deixassem Sarney assumir, sepultando as esperanças da volta da democracia.

Era uma questão pessoal. Acordava e dormia sofrendo. Pensava: E agora, e agora?

No fundo, já sabia que as esperanças eram vãs. Alguns colegas mais objetivos diziam que era uma questão de dias, de horas. Tancredo iria morrer. Eu me perguntava: O que será de todos nós que lutamos pelo fim do regime militar, que enfrentamos cavalaria nas ruas e gás lacrimogêneo? Como isso pode acontecer com este país, é falta de sorte, o que é?

Eu queria entrar lá. Ver Tancredo. Como a milionária que furou a segurança simplesmente porque apareceu numa limusine e abriram passagem. Mas para quê? Não sou dos que fazem milagres. Só sei sofrer como se fosse alguém da minha família.

Esse sofrimento obscureceu até outro aspecto tão importante da minha vida. Mas, diante dos fatos públicos, eu senti como minha vida pessoal era pequena. Finalmente, me tornei um escritor profissional. Sempre gostei do jornalismo. Estudei para isso. Mas eu queria mesmo ser escritor. Minha terceira peça, Uma cama entre nós, com a musa da pornochanchada cinematográfica Matilde Mastrangi, virou um sucesso em todo o país. Sim, após uma vitoriosa temporada no TBC (Teatro Brasileiro de Comédia), viajou de Estado em Estado, lotando teatros de mais de 1.000 lugares. Nada mais justo. Matilde acreditou em mim. Montou a peça sem grana, usando o sofá da casa dela no palco. E já no primeiro dia lotou. Para a viagem, comprou um ônibus, que leva cenário, atores. E eu ouço as notícias. O público gargalha quando assiste. Não nego: o belíssimo corpo de Matilde parece uma estátua grega esculpida à mão. Mas o público ri. Essa é minha vitória, porque a crítica me atirou no lixo. Aprendi, neste 1985, a erguer a cabeça cada vez que a peça voltava a São Paulo para pequenas temporadas, e era novamente achincalhado. Aprendi: escritor, pintor, cantor não deve ter medo de crítico.

Realizei um sonho: comprei uma casa própria. Quem não quer seu próprio  teto? Cresci ouvindo meus pais falando sobre a importância disso. Graças aos royalties da peça - jornalista não ganha bem - comprei uma casa em construção na Granja Viana. Fiquei tão sem dinheiro que deixei meu carro com o corretor. Tive de pegar carona na volta para meu apartamentinho alugado. Mas estou feliz. Um dia ganho para terminá-la.

Perdi a maior parte de meus fins de semana. Trabalhei na revista no horário correto (e jornalista tem horário?). Sonho com a TV, chegarei lá algum dia?

Mesmo com a doença e morte de Tancredo e a posse de Sarney, democracia, finalmente! Só assim este país vai tomar jeito.



(texto publicado no especial retrô Época 1985, em comemoração aos 17 anos de Época

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