segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Meu cão Rodney - Pat Gould


O que faltava em 'pedigree', sobrava em amor e lealdade

Dei-lhe o nome de Rodney. Quando nos conhecemos, há 12 anos, ele estava atrás de uma cerca na Sociedade para a Prevenção de Crueldade contra os Animais (SPCA). Passando por ali, fui desviada de meu caminho pelos latidos persistentes de um cão aflito. Rodney, então com 10 meses, avistou-me quando me aproximei e os latidos tornaram-se uivos de indignação, com um timbre de esperança. A cerca que nos separava era apenas um obstáculo que poderia ser facilmente vencido, se ao menos suas pernas fosse um pouco mais compridas.

Aquelas pernas. Imaginem uma mistura de um basset cor de cobre com um labrador. A cara, as orelhas e o corpo lembravam um labrador. As pernas eram mesmo de um basset. Um "basslabra", era o que ele era. Mais tarde, quem o visse no banco de trás de meu carro, a cabeça para fora da janela, supunha que fosse um labrador, deitado.

Estabelecemos um vínculo instantâneo. "Rodney", disse eu através da cerca, "teremos uma longa vida juntos." Ele contorceu-se de prazer, o rabo abanando, os olhos brilhantes. Entendera. Mas teríamos de esperar alguns dias - era o regulamento.

Meu marido não ficou lá muito feliz com a descrição do cachorro. "Vamos ser motivo de chacota!"

Nosso filho, Bill, concordou. Queriam um labrador de verdade.

Fui visitá-lo diariamente na SPCA, até que afinal Rodney veio para casa. Ele correu até a cozinha, onde meu marido estava lendo, molhou o piso, foi para o segundo andar, tornou a descer, derrubou uma mesinha, derrapou no tapete e bateu a cabeça numa porta de vidro de correr.

- Ele é... lindo! - disse meu marido, espantado.

- Perfeito! - concordou Bill.

Por que será que os homens não nos dão ouvidos?

As pernas eram do tamanho exato para cavar debaixo de nossa cerca "à prova de fuga". Aliás, Rodney, que fugia impunemente, tornou-se figurinha conhecida nas vizinhanças e numa pousada campestre ali perto. Volta e meia um empregado de lá nos telefonava comunicando a presença dele na lavanderia, na cozinha ou no quarto de um hóspede.

Nossa família gosta de barcos. Felizmente, Rodney adaptou-se ao nosso barco como qualquer labrador autêntico. De noite dormia no beliche mais macio, cansado de perseguir focas ou nadar atrás de gansos. E logo se tornou o mascote mimado da fraternidade náutica, saltando de um barco para outro em busca de petiscos e experimentando camas. A rejeição não fazia parte de sua vida.

Exceto por uma vez. Fomos convidados para jogar bridge em casa de conhecidos. Era a primeira vez que íamos lá. Levamos Rodney conosco, ingenuamente supondo que ele seria bem recebido, como sempre. A dona da casa não se mostrou tão entusiasmada quanto nossos outros amigos, mas depois que lhe garantimos que Rodney ficaria quieto, a meus pés, ela o convidou a entrar.

Tudo correu bem até que notei que ele tinha escapulido. Pedi licença par "ir ao toalete". Encontrei Rodney dormindo feliz na cama da dona da casa. Tinha feito seu "ninho", remexendo na roupa de cama com as patas dianteiras e os dentes, até conseguir um monte satisfatório onde dormir.

Com relutância, Rodney obedeceu à minha ordem, cochichada, para descer dali, e eu rapidamente refiz a cama. Qual a coberta de cima? Os travesseiros antes estavam empilhados, ou lado a lado? Eu teria conseguido tirar todos os pelos da colcha? 

"Ele é mesmo bem comportado", comentou nossa anfitriã, quando nos despedimos.

Em nossos passeios pela praia, Rodney nunca encontrou um cão de quem não gostasse. Por essa razão, muitas pessoas novas entraram em minha vida. Uma foi Elizabeth, que tinha um labrador chamado Kiri. Vi a senhora alta, de cabelos brancos, mexendo num monte de gelo com sua bengala branca, numa ensolarada manhã de inverno. Nossos cães se cheiraram, examinaram-se e depois foram brincar. Soube que Elizabeth morava sozinha a cerca de um quilômetro da praia, onde caminhava várias vezes por semana.

Com o tempo ela me contou que tinha duas filhas e quatro netos, e que o único filho se afogara, 15 anos antes, aos 20 anos de idade. Havia pouco perdera a maior parte da visão. Resistia ao auxílio de um cão-guia, o que seu querido Kiri não era.

Mal consigo me lembrar de quando Rodney não vivia conosco, embora tivesse havido outros cães antes dele, igualmente queridos. Nem notei que seu focinho ficara grisalho, que se movia mais devagar, fugia menos vezes. Numa imaginei a vida sem ele.

Mas um dia um câncer foi diagnosticado. Sem chances de cirurgia.

"Vocês saberão quando chegar a hora", disse o veterinário.

Eu soube. Numa ensolarada manhã, vimos Rodney cair de joelhos, levantar-se e depois tornar a cair, olhando para nós. Seus olhos estavam turvos, de sofrimento; sua expressão era de quem pedia socorro.

Naquele dia enquanto o veterinário injetava o soro fatal, meu marido e eu o acariciamos no banco traseiro do carro - seu lugar preferido, depois de nossa cama. Antes de termos tempo de suspirar ou de lhe fechar os olhos, a cabeça de Rodney tombou. Ele se fora.

A casa estava em silêncio. Meu marido retirou-se para sua oficina. Peguei a foto emoldurada no balcão da cozinha. Era Rodney, sentado no convés do barco, de costas para a cãmera, a cabeça virada. O sol poente formava um halo. Eu a guardaria "amanhã", e também o meu pesar.

- Preciso de um favor - nosso filho, Bill, disse-nos alguns meses depois.

- Um colega do trabalho teve de se mudar e não pode levar o cachorro para a casa nova. Você e o papai podem ficar com ele, por enquanto?

- Só por alguns dias - adverti. Onde está ele?

- No carro. Vou buscá-lo. - Bill saiu correndo.

Segundos depois um fardo negro e cheio de energia corria pela casa, espalhando tapetes e batendo com a cabeça na porta que dava para o pátio.

- É uma beleza! - disse meu marido.

Rocky era uma mistura de pastor e labrador. Tinha 2 anos, e era mesmo lindo.

O resto da história vocês já sabem. O "colega" não existia. Rocky foi nos conquistando, astuciosamente. Não teria de voltar para o depósito de animais.

Comemorando nossa decisão com um drinque no pátio, enquanto Rocky e Bill brincavam no gramado, meu marido fez um brinde silencioso.

Na manhã seguinte liguei para Elizabeth. "Que tal nos encontrarmos na praia? Está um dia lindo para um passeio a pé."

No carro, dei-me conta de que tinha levado a coleira de Rodney. Ele não se importaria - Rodney jamais conhecera um cão de quem não gostasse. Virei-me para meu novo amigo, que estava com a cabeça para fora da janela. "Rocky", disse-lhe, "teremos uma longa vida juntos."



(texto publicado na revista Seleções - abril de 2002)


















Nenhum comentário:

Postar um comentário