sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Luta pelo direito de salvar a filha - Ana Moura


Katiele, ao lado do marido Norberto, chegou a contrabandear derivado de maconha para a caçula que tem síndrome rara

"Uma caixinha de surpresas sentada no banco da frente de uma montanha-russa", assim a paisagista Katiele Fischer, 33 anos, descreve a filha caçula, Anny, 5. A pequena, que vive com a mãe, o pai, o servidor público Norberto Fischer, 46, e a irmã, Julia, 8, em Brasília, é uma das cinco crianças no país diagnosticadas com a Síndrome CDKL5, uma doença genética pouco conhecida até mesmo pelos médicos e que atinge cerca de 200 crianças em todo o mundo. Justamente pela situação tão peculiar, Anny surpreende frequentemente seus pais, que chegaram a contrabandear uma medicação proibida para melhorar a condição da pequena.

Em uma das buscas por respostas, Katiele encontrou em uma rede social os pais de uma menina americana, com a mesma síndrome de Anny, e foi deles que ela recebeu a primeira remessa do Canabidiol (CBD) - medicamento obtido de um dos 400 componentes da Cannabis sativa, popularmente conhecida como maconha - pelo correio há cinco meses. De uso proibido no Brasil, desde que Anny tomou por seringa o CBD, ela teve uma nova rotina, que não inclui frequentes crises convulsivas e constantes idas ao hospital. Muito pelo contrário, com o Canabidiol ela passa os dias mais alerta, consegue dormir uma noite inteira sem interrupções e não falta mais às sessões de fisioterapia. "Nunca perdi a esperança de que a Anny pudesse recuperar suas funções. A cada convulsão sofríamos com ela. O que mais importa é garantir qualidade de vida para nossa pequena. Iria até o fim do mundo pelas minhas filhas", afirma Katiele.

Lidando com o desconhecido

Anny demorou apenas 45 dias de vida para manifestar os sintomas da CDKL5, caracterizada inciialmente por um quadro de encefalopatia epiléptica, nas quais as crises de epilepsia refratária (resistente às medicações) se manifestam nos primeiros meses de vida. Até ser diagnosticada com a síndrome, aos 4 anos de idade, os tratamentos foram muitos e as incertezas ainda maiores. "Desde que a peguei no colo, percebi que havia alguma coisa errada. Ela tinha um olhar vago, perdido. Muito incomum, mesmo para bebês. A convulsão apenas confirmou que algo não estava bem", conta Katiele.

Hoje, com o diagnóstico definido, é possível analisar a evolução de Anny e da doença. Com 2 anos, ela começou a engatinhar. Aos 3, estava andando. Nesse período também conseguia pronunciar poucas palavras. Os avanços de Anny, hoje lembrados pelos inúmeros vídeos gravados por sua mãe, duraram pouco. Em apenas quatro meses, as brincadeiras desapareceram e, em função das crises convulsivas, a menina perdeu todos os movimentos. Os passos foram substituídos por constantes quedas. "As convulsões aumentaram e ela foi a zero no que diz respeito a desenvolvimento. Nem o controle cervical ela tinha mais. Não conseguia deglutir e tivemos que introduzir a sonda. Essa perda aconteceu em decorrência dos episódios convulsivos. "Quando se tem uma criança que desde bebê não esboça nenhuma reação, é difícil. Mas quando você tem esses retornos do seu bebê e perde, aí dói muito mais", lembra a mãe emocionada.

Lidando com crises cada vez mais frequentes, Anny teve suas terapias complementares suspensas, porque a mãe não conseguia chegar à clínica. Katiele era obrigada a parar o carro para socorrer a filha durante uma convulsão. O desgaste provocado pelas crises e o alto custo energético deixavam Anny cansada e ela acabava dormindo.

Mas a resposta definitiva sobre as dificuldades enfrentadas pela pequena veio somente quando Katiele recebeu o telefonema da neurologista que acompanhava sua filha à época avisando sobre a visita do dr. Charles Lourenço, geneticista de Ribeirão Preto ao Hospital Materno Infantil de Brasília (HMIB). Especialista em doenças genéticas raras, dr. Charles não precisou de muito tempo para identificar a CDLK5 em Anny. "Nunca corri tanto, recebi três multas no caminho só para poder chegar até ele. Quando cheguei com a Anny, não precisou mais que 20 minutos para que o dr. Charles desse o diagnóstico", lembra.

Tratamento

A identificação do CDKL5 permitiu à família e aos médicos apenas direcionar melhor o tratamento, mas não alterou o quadro clínico de Anny. Nem mesmo a cirurgia para colocação do aparelho chamado VNS ou Estimulador do Nervo Vago, semelhante a um marca-passo, foi suficiente para conter as convulsões. Instalado no pescoço, o aparelho dispara correntes elétricas em intervalos predeterminados para estabilizar a atividade cerebral. O VNS diminuiu apenas as internações, mas as crises não pararam.

O apoio de Katiele, Norberto e, em especial da irmão, Júlia, foi fundamental para Anny. A irmã, antes companheira constante de brincadeiras, incorporou a dura rotina da caçula, lembrando a mãe até mesmo de comprar os medicamentos necessários. "Júlia não saía do lado dela. Eu e o Fischer fiamos um pouco preocupados quando ela começou a brincar que as bonecas estavam convulsionando. Todas usavam cadeira de roda, iam para a UTI. Procuramos um psicólogo e mudamos a forma de conversar com ela. Nosso objetivo é tentar fazer com que ela veja de outra forma o que está acontecendo."

Canabidiol

Graças à internet, Katiele e Norberto chegaram a um grupo criado por parentes de portadores da CDLK5 e viram relatos sobre uso do Canabidiol no combate às crises de epilepsia. Ilegal no Brasil e muito utilizado em países como Estados Unidos, o CDB é uma alternativa viável em casos nos quais os medicamentos tradicionais não surtem efeito. Mesmo diante dos custos relativamente elevados do medicamento, cerca de 100 dólares por seringa. a família decidiu fazer uma tentativa. Embora o plano de saúde cubra boa parte do acompanhamento médico de Anny, outros gastos, incluindo as doses de Canabidiol, são bancados exclusivamente pela família, sendo que Katiele não assumiu mais projetos por causa dos cuidados com a filha. Do governo, Anny recebe apenas um leite especial. Além da família americana que ajudou o casal com as duas primeiras doses, um amigo que foi para os EUA comprou e trouxe doses clandestinamente para a pequena.

Um mês antes de começar o uso do CBD, o casal criou uma tabela para ilustrar qual era, com exatidão, o quadro vivido pela menina. Em um formulário simples, o dia foi dividido em quatro períodos: madrugada, manhã, tarde e noite. A cada crise um quadradinho era pintado. Ao final do dia era difícil ver um espaço em branco. Por semana, a média de crises convulsivas variavam entre 60 e 80, com duração de um a dez minutos. Nove semanas após a adoção do Canabidiol, as crises foram reduzidas a zero.

Temendo que Anny sofresse prejuízos por causa de um possível atraso na administração do CBD, Katiele e Norberto entraram com uma ação, fundamentada cientificamente por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), na 3ª Vara Federal do Distrito Federal, solicitando que a Anvisa liberasse o uso do Canabidiol para sua filha. Em decisão inédita no país, o juiz Bruno César Bandeira impediu que a Anvisa retenha as importações do medicamento feitas pela família Fischer.

No caso específico de Anny, o Canabidiol em combinação com o VNS, vem proporcionando mais qualidade de vida e a família já comemora os resultados. "Hoje Anny começou a recuperar o controle cervical. Consideramos vitória as pequenas coisas, como um olhar, um barulho, um som qualquer. Ela não fazia mais sons, não chorava, não fazia nada. Nem mesmo durante os exames de sangue ela esboçava uma reação. Ela chegou a um estado neutro, estava off-line, agora ela já está online", diz Katiele sorrindo.

Para o casal não resta dúvidas de que o Canabidiol representa uma luz no fim do túnel. O remédio trouxe novas possibilidades para uma criança que surpreende mais pelo espírito aguerrido do que por sua rara condição. "Como mãe, espero que ela melhore. Aprendemos com a Anny a viver um dia de cada vez e a jamais fazer planos a longo prazo. Cada convulsão poderia ter um comprometimento ainda mais severo do que ela já teve até agora. Essa foi nossa grande lição: não deixar para curtir depois, tudo é hoje. Vamos ver até onde ela chega!"



(texto publicado na revista Contigo nº 2015 - 1º de maio de 2014)









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