quarta-feira, 30 de julho de 2014

A última derrota de Napoleão


Novo livro reconta em detalhes os últimos três dias do imperador que foi venerado, detestado e exaustivamente estudado

Nenhuma outra figura histórica vendeu tanto livro quanto Napoleão Bonaparte, se descontarmos a "Bíblia". Somam-se cerca de 80 mil títulos, sendo que alguns alcançaram a venda de mais de um milhão - como a biografia de André Castelot, dos anos 1960. Tão incensado quanto detestado, o general que se tornou o primeiro imperador da França nunca saiu da moda nas universidades ou livrarias. Às vésperas das comemorações dos 200 anos de sua abdicação, em 1815, começam a pipocar títulos sobre o período. Um dos mais curiosos deles - que já pode ser encontrado em português - trata com lente de aumento dos três dias que antecederam a renúncia que marcou o fim de seu governo.

"L'Abdication", que chega no Brasil como "A Queda de Napoleão", relata as 72 horas que separam a volta do imperador a Paris depois da derrota de Waterloo do ato que devolveu a França à dinastia de Luiz XIII. Além dos documentos já mais que conhecidos, o historiador Jean-Paul Bertaud, se apoiou nas cartas trocadas entre o governante e o grupo minguado de aliados depois das sucessivas derrotas do Grande Exército, sustentáculo do governo bonapartista.

O desespero e suas tentativas de justificar a derrota mostram a consciência do general que estava mais frágil do que nunca. Nesse ponto, seu império já experimentava uma sobrevida. Um ano antes, em abril de 1814, ocorrera uma primeira abdicação, da qual Napoleão se reergueu, apesar do decréscimo de saúde, dinheiro e soldados.

Além de muita dificuldade em largar o poder, Napoleão tinha o controle de quase todos os jornais e dos telégrafos, de maneira que rumores da abdicação não foram veiculados em nenhum momento antes da derrota. E, depois que aconteceu, levou semanas, quando não meses, para chegar a todo o território francês.

Bertaud mostra num relato emocionado que a renúncia encontrou ainda resistência da população francesa em aceitar o fato. Mesmo dividida naquele instante, prevalecia a ideia de que o país havia se tornado um império graças ao seu herói controverso.

A abdicação ocorreu em 22 de junho. Nos Baixos Alpes, o povo de Dignes, por exemplo, só soube do ato em 2 de julho. Três meses antes, quando Napoleão voltou de Elba, Dignes levou poucos dias para receber a informação e distribuir entre os seus habitantes. Em Lyon, os cartazes sobre a renúncia foram retirados dos muros e rasgados. Em Périgueux, uma junta militar cobriu os locais que deveriam noticiar a saída de Bonaparte com mensagens de fidelidade ao antigo governante. "Não seremos russos, nem prussianos, nem ingleses, nem alemães. Preferimos morrer de armas em punho a deixar de ser franceses."

Napoleão era uma lenda em vida. E sabia disso. "Minha vida daria um romance", era um de seus bordões. Em suas memórias, Benjamin Constant sintetiza a forma como Napoleão se tornou um mártir. "Contando com os destroços de um Exército ainda invencível e uma multidão galvanizada pelo som do seu nome, preferiu abrir mão do poder e disputá-lo pelo massacre da guerra civil". 

Não era bem assim. Napoleão queria ficar e refazer seu Exército, mas não tinha dinheiro, nem apoiadores que o ajudassem na arrecadação. Três dias antes, de renunciar em nome do filho, que ainda era uma criança e por isso não assumiria, o imperador pensava em resistir. Passadas 24 horas, ele começava a elaborar outros planos: mudar-se para a terra de Benjamin Franklin, que também tinha lutado contra a Inglaterra. Como cidadão comum instalado, poderia chamar seus amigos mais próximos e fundar uma pátria nova. "Antes que se passe um ano, os acontecimentos da França e da Europa haverão de agrupar a seu redor milhões de indivíduos, em sua maioria dispondo de propriedade, talento e instrução" - teria lhe aconselhado Lavalette, um de seus últimos homens de confiança. Ou seja, o sacrifício não teria sido exatamente uma escolha.

Bilhetes como estes trocados nessas últimas 72 horas de permanência do governo no palácio do Eliseu mostram também que a megalomania, assim como a cistite e as dores de estômago, não queriam deixar o governante. Diferentemente do que Benjamin Constant defendia, e que bonapartistas repercutiram ainda durante muito tempo depois de sua morte. Napoleão Bonaparte não abdicou para salvar a França da guerra civil. Ele ainda tentou argumentar a favor de uma ditadura temporária. "Eu preciso ser investido de um grande poder. No interesse da pátria eu poderia me apropriar desse poder, mas seria muito mais útil e mais racional que ele me fosse concedido pelas Câmaras". Não convenceu. Em três dias embarcava para a Ilha de Santa Helena, onde morreria seis anos depois, eternizando-se como mártir.




(texto publicado na revista Isto É nº 2324 - ano 38 - 11 de junho de 2014)




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