sábado, 26 de julho de 2014

Os amantes do século - Roberto Muggiati


Uma russa exilada e um catalão tímido, dez anos mais moço. Gala e Salvador Dalí se conheceram em 1929 e nunca mais se largaram, até a morte dela, 53 anos depois. Ele se arrastou como um fantasma por mais sete anos. Musa e pintor dividiram a vida e também se multiplicaram em centenas de telas pelos museus e galerias do mundo. E deixaram sua marca como o casal surreal do século 20

"Ela me apareceu em Cadaquès, acompanhando o marido, Paul Éluard. Inebriado pelo desejo de reter o seu olhar, raspei as axilas e as pintei de azul, cortei minha camisa, me besuntei de cola de peixe e excremento de cabra, ornei meu pescoço de um colar de pérolas e minha orelha de um jasmim. Quando a reencontrei, fui incapaz de lhe falar, sacudido por um riso demente, cataclisma, fanatismo, abismo, terror. No dia seguinte, ela pegou a minha mão, acalmou aquele riso e me disse gravemente: 'Meu pequeno, não vamos nos largar mais'".

Assim Salvador Dalí descreve seu encontro com Gala. Aconteceu no verão de 1929, sob o esplendoroso sol mediterrâneo da Catalunha. O encontro da russa de 35 anos, há 20 anos exilada de seu país, com um catalão tímido e complicado, dez anos mais moço, tinha tudo para ser um choque cultural. Mas, fiéis ao oráculo de Gala, ficaram juntos pelo resto da vida.

Àquela altura, a vocação de Elena Dimitrievna Diakonova - nascida em Kazan, a capital dos tártaros, em 7 de setembro de 1894 - já estava definida. Ela seria musa. E controlaria as vidas do grande poeta francês Paul Éluard e de dois fabulosos pintores surrealistas, Max Ernst e Salvador Dalí. Gala conheceu Éluard num sanatório para tuberculosos na Suíça, casou-se em Paris e teve com ele sua única filha, Cécile, em 1918. Entre 1924 e 1927, Gala viveu simultaneamente com Éluard e com o pintor alemão Max Ernst.

Inseparáveis

Dalí entrou em sua vida como a tramontana, o temível vento que castiga a Catalunha e as Baleares. Salvador Domingo Felipe Jacinto Dalí i Domènech, 1º marquês de Dalí de Púbol, nascido em Figueres, na Catalunha, Espanha, em 11 de maio de 1904. Nove meses antes, morrera seu irmão mais velho, com apenas 2 anos. Aos 16 anos, perdeu a mãe. O pai, advogado famoso, casou com a irmã da mulher. A morte da mãe é um trauma para o adolescente de índole complicada. "Eu não podia resignar-me à perda de um ser com que eu contei para tornar invisíveis as inevitáveis manchas da minha alma". Com a irmã Ana Maria, três anos mais moça, teria uma ligação incestuosa. Dalí desde cedo era um forte candidato ao divã (encontrou-se em Londres com Freud em 1938 e fascinou o psicanalista). Pintor precoce, estudou, por imposição do pai, na Escola de Belas Artes de Madri, sendo expulso por sua indisciplina crônica. Em Paris, em 1929, filiou-se aos surrealistas e exibiu o filme Um Cão Andaluz, que fez com o cineasta Luís Buñuel. Sua rebeldia o indispôs contra o líder do movimento, o poeta francês André Breton. Em 1940, Dalí e Gala se mudaram para os Estados Unidos. Gala manipulava a carreira do marido (casaram-se no civil em 1934, em Paris). Dalí, além da pintura, passou a dar asas a seu narcisismo e se tornou uma "obra de arte ambulante". Justiça se faça: foi um dos primeiros pintores que saiu da tela convencional para as "performances" e "instalações". A América se apaixonou por Dalí - e o abarrotou de dinheiro. Breton fez um ácido anagrama com seu nome: Avida Dollars... Criticado por suas posições políticas, Dalí se professou "anarquista e monarquista". Dominique Bona, biógrafa de Gala, disse: "Os Dalí preferem a ordem à desordem, a paz à guerra civil e o conforto à revolução. Dalí só quer calma para pintar Gala, a garantia de que os golpes da história, que já abalaram seu país, não a joguem na miséria".

Duas forças da natureza

Em 1936 Dalí foi consagrado na capa da revista Time. Já ostentava um tímido bigode, que depois se tornaria aquelas duas hastes finas e pontudas encurvadas como os chifres de um touro. O século teve dois bigodes famosos: o de Dalí e o de Chaplin (imitado por Hitler...). Em 1945, Dalí desenhou as cenas de sonho do filme de Hitchcock, Spellbound (Quando Fala o Coração), um suspense que pretende divulgar a psicanálise de Freud. No ano seguinte, fez um desenho animado com Walt Disney, Destino, que só iria para as telas em 2003.

Passado o pesadelo nuclear dos anos 1950 e a fúria política dos 1960, o mundo se acomodou ao som de disco music nos descontraídos 1970. Festejados por toda parte, Dalí e Gala passaram a ser VIPs, jet-setters, a nata do beautiful people. Dalí viajava nos seus delírios. Jovem, já dizia descender dos mouros que ocuparam a Espanha por oito séculos, com seu amor ao ouro e ao excesso, sua paixão pelo luxo e pelas roupas. Fazia frases de efeito: "A única diferença entre mim e os surrealistas é que eu sou o surrealismo". "A única diferença entre mim e um louco é que não sou louco." Embarcou na onda neoesotérica e ditou um livro de confissões (As Paixões Segundo Dalí) a Louis Pauwels, editor da revista Planète. "Gala é para mim uma esfinge benfazeja que, ao invés de me interrogar, interroga para mim os enigmas e detém em sua carne as respostas. Eu descreveria minha paixão a partir de um ponto minúsculo de seu corpo de mulher: um grão de beleza que se situa no lóbulo da orelha esquerda de Gala e é o local de concentração de minha vida afetiva (...) Juro que jamais fiz amor com outra mulher. Não creem em mim, pois dedico muito tempo a inventar jogos eróticos, mas nunca aconteceu de me entregar a outra mulher que não Gala."

Felizes para sempre

Raramente uma modelo apareceu tanto nas telas de um artista. Entre seus retratos mais famosos estão A Madona de Port Lligat, Galatea das Esferas e Retrato de Galerina, que Dalí levou seis anos para pintar. Em 1958, depois de obter no Vaticano autorização do papa Pio XII, Dalí casou com Gala no religioso em cerimônia íntima na cidade de Girona. Quando Gala cansou do cerco permanente da mídia a Dalí, ele comprou para ela um castelo, em Púbol, nas imediações da casa do casal. Gala morreu no início da manhã de 10 de junho de 1982, aos 87 anos. Dalí, com 78, perdeu a  vontade de viver. Deixou de comer, passou a ser alimentado por uma sonda nasal, assolado pelos tremores do mal de Parkinson. Em 1984, sofreu queimaduras num incêndio em seu quarto, o que muitos consideram uma tentativa de suicídio. Em 23 de janeiro de 1989, morreu de insuficiência cardíaca, aos 84 anos, ouvindo seu vinil arranhado favorito de Tristão e Isolda. Foi enterrado no Teatro-Museu Dalí, em Figueres, diante da igreja onde foi batizado, fez a primeira comunhão e recebeu os serviços fúnebres, a apenas três quarteirões da casa onde nasceu.

O século 20 teve grandes casais. O Duque de Windsor, que abdicou ao trono pela divorciada Wallis Simpson. Belos e malditos, Zelda e Scott Fitzgerald; belos e bandidos, Bonnie & Clyde. Liz Taylor e Richard Burton. Sartre e Simone. Lennon e Yoko. Mas, em matéria de amor infinito, louco e surreal, Gala e Dalí são imbatíveis.



(texto publicado na revista Contigo nº 2020 - 5 de junho de 2014)






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