quinta-feira, 31 de julho de 2014

Vislumbres de eternidade - Jerônimo Teixeira


Para um filme extraordinário, uma trilha extraordinária: A Grande Beleza apresenta ao expectador a vigorosa vertente sacra da música religiosa contemporânea

"O Além está além, e eu não me ocupo do Além", diz Jep Gambardella, jornalista, escritor e bon-vivant, no monólogo final de A Grande Beleza. A trilha sonora silencia exatamente nessa frase. Segundos antes, porém, as digressões de Gambardella (magnificamente interpretado por Toni Servillo) eram sublinhadas por vozes límpidas e serenas - quase se diria: angelicais - que cantam os versos místicos de The Lamb (O Cordeiro), do poeta inglês William Blake (1757-1827). Como tantas outras peças corais compostas pelo inglês John Tavener, The Lamb é um suave convite à elevação espiritual. A mesma música acompanha a cena em que o protagonista faz um passeio solitário às margens do rio Tibre e considera, pesaroso, a fútil ambição que o inflamou ao chegar, jovem, a Roma: tornar-se o "rei dos mundanos". Nas cenas mundanas - festas exuberantes, selvagens e bregas -, o filme recorre à música eletrônica da hora (incluindo o DJ brasileiro Gui Boratto). Mas, sempre que Gambardella se recolhe à nostalgia e á melancolia, o que se ouve é música sacra. Não, não Bach ou Handel, mas compositores contemporâneos como Tavener - morto no ano passado, aos 69 anos - o americano David Lang, o estoniano Arvo Pärt ou o russo Vladimir Martynov. Uma trilha extraordinária para um filme extraordinário.

The Lamb - Tavener


Em A Grande Beleza - vencedor do Globo de Ouro de filme estrangeiro e indicado ao Oscar na mesma categoria -, o diretor italiano Paolo Sorrentino leva o espectador do grotesco ao sublime de um momento para o outro. O melhor exemplo disso é a freira caquética e meio tantã que acaba se mostrando capaz de milagres genuínos. O milagre vem com música: The Beautitudes, de Martynov, executada pelo quarteto de cordas americano Kronos, é a peça mais emocional da trilha, quase manipulativa quando entra nas cenas mais ternas. Sua prolongada repetição do mesmo tema mostra a dívida do autor com o minimalismo de americanos como Steve Reich e Philip Glass, mas também reflete a disciplina rígida da Igreja Ortodoxa Russa. Trata-se, afinal, de uma oração. O americano David Lang, participante de um grupo de vanguarda de Nova York chamado Bang on a Can (Batida em uma Lata), define World to Come, etérea peça para violoncelo que entrou na trilha de Sorrentino, como "uma espécie de oração, introspectiva e muito pessoal". Arvo Pärt é, ao lado do polonês Krzysztof Penderecki (que Sorrentino deixou de fora), um expoente da música religiosa. Nos anos 1960 e 1970, a espiritualidade foi sua forma de resistência diante do ateísmo oficial do regime comunista (a Estônia pertencia então à União Soviética). Mas a música de Pärt que entrou no filme fala não de fé, e sim da saudade do torrão natal - no caso, a região escocesa das Highlands celebrada pelo poeta Robert Burns (1759-1796). "Meu coração está nas Highlands, meu coração não está aqui", diz a soprano Else Torp no refrão. Há um diálogo subterrâneo com a existência deslocada de Gambardella: embora imerso no luxuoso decadentismo de Roma, ele deixou seu coração num romance da juventude.

The Beatitudes - Martynov


My heart's in the Highlands - Arvo Pärt


O CD de A Grande Beleza não está nas lojas brasileiras. Mas é fácil encontrar boas gravações das músicas do filme nas lojas virtuais. Os compositores que figuram na criação de Sorrentino realizaram um feito raro na música erudita contemporânea: encontraram um público. Um dos ítens da trilha, a Terceira Sinfonia, do polonês Henryk Górecki, morto em 2010, até esteve nas paradas: uma gravação dos anos 1990 chegou a vender 1 milhão de cópias. O crítico americano Alex Ross diz que Tavener, Pärt e Górecki encontraram ouvintes porque oferecem repouso em uma era de saturação. Nos termos do memorável monólogo de Gambardella: essa música está entre os vislumbres de beleza que ouvimos quando o mundo silencia seu blá-blá-blá.


Terceira Sinfonia - Górecki



(texto publicado na revista Veja nº 4 - ano 47 - 22 de janeiro de 2014)







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