sexta-feira, 25 de julho de 2014

Para as mães de Santa Maria - Adriana Negreiros


A atriz Cissa Guimarães, apresentadora do programa do GNT Viver com Fé, que virou livro com o mesmo nome, conta que vai ajudar as mulheres que perderam os filhos no incêndio. Dois anos e meio atrás, ela sentiu o mesmo golpe quando seu filho Rafael, de 18 anos, morreu atropelado

Eu sei o que é a dor que as mães que perderam os filhos no incêndio de Santa Maria estão sentindo. Por isso, esse episódio me doeu bastante. Demais. Fiquei muito mal. Na hora, quis ir pra lá. Não deixaram - tanto os meus filhos como os repórteres amigos acharam que não era uma boa ideia. Mas eu ainda vou. Quero esperar completar um mês - que é um período muito caótico, em que é preciso lidar com questões pragmáticas - e vou lá com certeza. Eu posso ajudar, porque essa dor eu conheço. Quando o Rafael morreu, uma coisa que me ajudou foi conhecer experiências de pessoas que passaram por isso e sobreviveram. A primeira sensação que você tem é de que nunca mais vai conseguir fazer coisa nenhuma. É um medo enorme. Pensei: "Eu vou morrer". E você vê que tem mais filhos, mas não sabe como lidar com aquilo. Na época, eu estava com uma amiga em casa e perguntei pra ela: "Como faz? Como é que você conseguiu? Pelo amor de Deus, me ensina?" Eu lembro que perguntava a todo instante: "Cissa, o Rafa só mudou de lugar. Ele não está mais ao lado de fora. Está dentro de você pelo resto da vida".

Então, naqueles primeiros dias, me ajudou muito ver outros exemplos positivos de pessoas próximas. Eu tenho uma amiga muito engraçada. Quinze anos atrás o filho dela morreu, mas você sai com ela e ri o tempo inteiro. Pra mim, ela é um exemplo. O Gilberto Gil também. Ele perdeu um filho, o Pedro, e uma vez me disse: "Pelos nossos filhos que se foram é que temos que viver aqui lindamente. Em nome da vida que nos é dada e que eles não puderam viver, temos que viver dignamente". Em nome do Rafa, tenho que procurar a minha alegria. A missão dele foi concluída, mas minha vida está aqui. Isso me dá uma força muito grande. Se eu pudesse dizer algo para as 239 mães de Santa Maria que perderam seus filhos, eu diria que fomos escolhidas. Nós somos pessoas muito importantes. Na escalação de elenco, fomos eleitas as personagens mais difíceis da peça. A cortina vai abrir, o público vai estar lá esperando e temos que fazer o nosso melhor. Se essa é nossa missão, vamos cumpri-la. Tem aquela frase que ouvimos mil vezes, mas é certa: "Deus dá o fardo a quem pode entregar".

Eu sou uma mulher aleijada. Perguntar se eu sou feliz é como perguntar como se sente uma pessoa que andava e perdeu as duas pernas. Ou alguém que enxergava e ficou sem a visão. Dentro do que se é, cabe muita felicidade. Mas meu coração está amputado, de muleta. Cem por cento de felicidade t alvez eu não consiga mais ter. Sou uma mãe que perdeu o filho! Meu Deus do céu, eu queria o Rafael comigo! Às vezes bate muita dor. A felicidade na minha vida seria estar com os meus três filhos até eu fazer a passagem. O Rafa se foi com 18 anos. Vejo os amigos dele que estão começando a se formar, trabalhando, e penso: "Como seria com o Rafa?" Ele ia para a Europa, já estava com a passagem marcada. Ao mesmo tempo, penso que ele está em um lugar muito melhor. E fico achando que me tornei, de uma maneira louca, uma pessoa melhor. Não quero dizer com isso que alguém deva passar por essa dor imensa. Não, pelo amor de Deus. Mas, se foi assim, é preciso ver o fato como uma chance para evoluir e melhorar como ser humano. Se aconteceu, aproveite para evoluir espiritualmente e abrir a sua conexão com o sagrado. Eu não me revoltei contra Deus. E tenho, sinceramente, pena daquele rapaz que atropelou o Rafael. Juro por Deus, tenho muita pena. mesmo que ele seja feliz agora, porque lá no fundo ele sabe que a felicidade não é verdadeira. Tenho muita pena dessa mãe, que nunca me procurou. Ela não tem noção do que é ser mãe. Ela desperdiçou a maior chance do mundo para fazer a conexão com o divino, que é por meio da maternidade. Ser mãe é nortear, é fazer o seu filho ser uma pessoa do bem - não é só transar porque é gostoso, ficar grávida e ter um bebê. Não. Ser mãe é educar. Eu me cobro muito por ainda não ter perdoado aquele rapaz. Mas tenho essa intenção e estou no caminho. Se a Justiça for  feita da maneira correta, sou capaz de chegar a esse cara e dar um abraço nele.

Eu sou guerreira. Se sou forte, não sei. Tenho fé em que vou reencontrar o Rafa. Às vezes, penso: "Será que ele vai estar com a mesma cara?" Acho que não.  Mas sei que vou encontrá-lo, na forma como estiver. Então, eu não tenho mais medo da morte, porque acredito que vou ver o meu filho. Há situações, quando a vida está mais difícil, em que fico até querendo fazer a passagem, gostaria de estar lá com ele. Mas eu também sei que ele só vai me querer lá quando eu tiver concluído o que preciso fazer aqui. Por isso, tenho de ficar bem bacana, bem bonita, fazer escova no cabelo! Quando for a hora, vou lá. E vou agarrar muito, beijar muito o meu filho. Por enquanto, ele está lá, cuidando de mim.



(texto publicado na revista Claudia nº 3 ano 52 - março de 2013)




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