sábado, 9 de agosto de 2014

Faxina mental - Juliana Tiraboschi com a colaboração de Mariana Gusan


Apagar informações da memória não só é natural como essencial para nossa sobrevivência e bem-estar

Pense no dia 3 de setembro de 2004. Tente se lembrar de tudo o que aconteceu durante o dia: que horas você acordou, o que comeu, se o clima estava quente ou frio. Difícil recordar? Não se preocupe, você é completamente normal. Nós recebemos informações ininterruptamente. Nessas condições, seria impossível gravar tudo o que vemos, sentimos e ouvimos em nossa memória. Nosso cérebro trabalha processando esses dados, armazenando o que é importante e descartando o que não tem utilidade. É por isso que você dificilmente recordará o que fez em um dia qualquer do ano passado, a não ser que alguma coisa muito importante tenha ocorrido nessa data. Estranho seria agir como uma mulher americana estudada pelo pesquisador James McGaugh, do departamento de Neurobiologia do Aprendizado e Memória da Universidade da Califórnia, um dos maiores especialistas em memória do mundo. Há alguns anos McGaugh vem pesquisando o funcionamento do cérebro dessa paciente, mas nunca encontrou nada de anormal com ela. Então como explicar que essa mulher consegue se lembrar minuciosamente dos acontecimentos em sua vida e dos fatos mais importantes que aconteceram no mundo em qualquer dia aleatório dos últimos 20 anos? Parece mentira, mas suas respostas são comprovadas pelas anotações que ela manteve em diários por muitos anos e por arquivos de veículos noticiosos. "Estamos tentando descobrir como isso acontece, mas é extraordinário", impressiona-se McGaugh. E por que essa habilidade é tão fora do comum? Simples, porque o processo natural seria que o nosso cérebro jogasse fora informações pouco relevantes. Ou seja, o esquecimento é tão natural quanto respirar.

Basicamente as memórias são classificadas em longa duração, que armazena as informações mais antigas, a memória recente (também chamada por alguns de curta duração), que retém fatos apreendidos algumas horas ou dias atrás, e a memória de trabalho (ou operacional), aquela que usamos quando memorizamos um número de telefone por alguns minutos, apenas para o esquecermos pouco tempo depois de usá-lo, ou quando estamos lendo um livro e temos que nos recordar do começo da história para entender o restante da trama. Nesse tipo de memória o esquecimento não só é comum como inerente a seu funcionamento. Recentemente surgiu ainda o conceito de memória prospectiva, ou "do futuro". É quando temos que nos lembrar de um evento que ainda vai acontecer, como uma reunião marcada para o dia seguinte.

Apesar de serem interligados, os circuitos da memória são independentes. isso explica o caso de pessoas que sofrem determinadas lesões cerebrais e por consequência não são mais capazes de formar nenhuma memória nova, apesar de poderem evocar perfeitamente lembranças antigas. "Se você mostrar uma lista de palavras a uma pessoa com uma lesão no giro angular, ela pode não lembrar de nenhuma delas logo em seguida. No entanto, se você perguntar 10 ou 20 minutos depois, ela talvez se recorde de algumas", ilustra o neurologista Gilberto Xavier, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. As memórias são formadas por sinapses, ou conexões entre os neurônios. Quando as sinapses não são utilizadas, atrofiam-se, e as lembranças ligadas a elas podem enfraquecer e até desaparecer completamente. Isso acontece quando você não vê alguma pessoa há muito tempo e a imagem dela vai se "apagando" do seu cérebro até que chega a ser quase impossível recordar as feições de seu rosto. 

É como um músculo que não é exercitado e fica fraco. Seja por falta de uso ou por degeneração causada por doenças como o Alzheimer, é assim que ocorre o esquecimento real. Os outros mecanismos de falhas na evocação de memórias caracterizam-se mais precisamente como omissão de lembranças. Desses, um dos mais estudados é a repressão, processo descrito originalmente por Freud. "A repressão é uma ideia freudiana de que existe uma força ativa no cérebro que tenta impedir que material desagradável venha à consciência. Não há evidência científica disso, o que existe é evidência de supressão", acredita James McGaugh. Porém, outros cientistas acreditam que repressão e supressão sejam nomes diferentes para o mesmo fenômeno.

Esquecer é viver

Michael Anderson, da Universidade de Oregon, é um dos maiores especialistas nesse campo. Duas pesquisas suas, uma publicada em 2001 e outra em 2004, demonstraram que o mecanismo de repressão descrito por Freud é real. Anderson fez testes com voluntários nos quais os fazia associar pares de palavras aleatórias e depois os estimulava a lembrar apenas de cada par e a esquecer a segunda. O resultado foi que os indivíduos tiveram dificuldade em recordar as palavras reprimidas, mesmo quando lhes ofereciam dinheiro por isso. "Eu não diria que eu apaguei as memórias, mas os voluntários as inibiram, tornando-as mais difíceis de serem lembradas quando desejado", explicou Anderson a Galileu. Assim como tudo o que acontece no organismo, o mecanismo de repressão tem suas funções, como suprimir lembranças dolorosas e até garantir a sobrevivência da espécie humana. "Sem a repressão nenhuma mulher teria mais de um filho, porque estaria relembrando continuamente a dor do parto", esclarece o neurocientista Iván Izquierdo, do Centro da Memória do Instituto de Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Arquivo vivo

Sejam essenciais para a sobrevivência ou banais, as informações só são armazenadas enquanto for necessário. "Suponha que na última quarta-feira você  tivesse passado muito mal depois do almoço. É importante que você retenha essa informação por um certo período de tempo para que você identifique o que causou o mal-estar e tome providências. Mas passada uma semana aquela informação pode simplesmente entrar em decaimento. Seria irrelevante arquivar", exemplifica o neurofisiologista Gilberto Xavier.

Esquecemos também por falta de atenção, quando o registro de alguma informação ocorre de forma superficial e os dados não são armazenados de forma consistente e duradoura. "Também esquecemos quando não entendemos, pois para uma informação perdurar ela deve ter um significado claro. Poucos se lembram do formato do mapa da Rússia, além dos russos, mas o da Itália quase todos se lembram, pois quando o estudamos vimos que tem a forma de uma bota: demos um significado ao contorno, o que favoreceu a consolidação da informação", exemplifica a neuropsicóloga Mirna Portuguez, da PUC do Rio Grande do Sul. Mas o aprendizado, se depende da memória, também necessita da eliminação de informações. "Sem o esquecimento não aprendemos. A partir do momento que se estabelece um conceito, todas as particularidades de todas as espécies de objetos ou seres que eu estou conceituando são abstraídas", ensina a psicóloga Maria Alice de Mattos Pimenta Parente, do Instituto de Psicologia da UFRGS.

A "pílula mágica"

E se pudéssemos tomar um remédio que nos ajudasse a esquecer? Uma notícia divulgada no final de julho na revista científica "Nature" revelou que um grupo de psiquiatras nos EUA acredita que drogas do tipo bloqueadores beta, utilizadas largamente para tratar hipertensão, agem "apagando memórias ruins", se administradas no momento certo. Entretanto, o mecanismo não é tão simples assim. "O uso dos bloqueadores beta para o controle em situações de estresse situacional como falar em público já é antigo", conta o psiquiatra Frederico Graeff, da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto. "Mas a droga não faz esquecer um trauma, o que pode fazer é barrar um fluxo emocional excessivo, a pessoa não revive os sentimentos", esclarece. "O bloqueador beta inibe a ação da adrenalina e sua 'prima' no cérebro, a noradrenalina. Se você tem uma experiência emocionalmente estimulante, você vai liberar essas substâncias no corpo e no cérebro e elas têm o papel de determinar o quão fortemente as memórias serão lembradas. O bloqueador beta barra a ação delas e enfraquece as memórias", detalha James McGaugh.

Remédio para quê?

Há alguns meses veículos da mídia alardearam que cientistas haviam inventado uma "pílula da memória". Batizada de CX717 e criada em 1997 por Gary Lynch, da Universidade da Califórnia, a droga, da família das ampaquinas, melhoraria as sinapses cerebrais e estimularia a produção de glutamato, substância que favorece o aprendizado e a capacidade de memória. Ainda em fase de teste, o laboratório Cortex estuda lançar a droga comercialmetne, tanto para pacientes com Alzheimer quanto para indivíduos saudáveis que querem turbinar a memória. "Não há uma evidência sólida de que a droga possa ter um efeito clinicamente útil", pondera Izquierdo. Para o neurofisiologista Gilberto Xavier, apesar da droga ter se mostrado eficaz, a utilidade dela é discutível. "Os efeitos são muito inespecíficos. As pessoas querem guardar aquelas informações que as interessam, e não uma lista enorme de outras. Será que com a droga vai favorecer as memórias do conteúdo no qual você está interessado ou vai ficar lembrando de como você segurou o sabonete durante o banho?", brinca Xavier.

"Nós temos a capacidade de aprender tudo, desde que tenhamos tempo. Não há restrição para a quantidade de informação que podemos ter no cérebro. O que é limitado é o que você pode lembrar tendo ouvido apenas uma vez", acredita James McGaugh. Portanto, se você vez por outra não consegue se recordar de algo e sente-se frustrado por isso, lembre-se de que muitas vezes um "apagão" é necessário e até saudável.




(texto publicado na revista Galileu nº 170 - setembro de 2005)









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