terça-feira, 24 de maio de 2016

Ciência e espiritualidade - Padma Samten


Ter a mente aberta, sem se apegar a uma verdade única, é o que nos torna capazes de ver além das aparências

A ciência e a espiritualidade parecem campos longínquos ou mesmo opostos. Há o campo do conhecimento confiável, testado na experiência concreta, reproduzível a qualquer momento. A água ferve a cem graus e congela a zero. Sendo a água, a temperatura e a pressão atmosférica as mesmas, o resultado é igual, em qualquer lugar, a qualquer hora, com qualquer pessoa. Parece não haver espaço para especulações filosóficas, psicológicas e muito menos espirituais no campo da ciência.

Isso é um engano. Em qualquer livro de história da ciência vamos encontrar uma lista enorme de visões que foram respeitáveis e se tornaram ultrapassadas. Como pôde o filósofo René Descartes acreditar que o número de planetas do sistema solar estava associado aos números de sólidos regulares da geometria? Como o pensamento de Aristóteles pôde perdurar por séculos até Galileu Galilei provar que não importa o peso de um objeto, pesado ou leve, todos caem à mesma velocidade?

Sim, existe o papel da mente. Nosso mundo interno dá vida e realidade às aparências que chamamos de mundo externo - mesmo com os cientistas. Quando mudamos dentro, nosso passado muda e também o presente e o futuro. Mudam as explicações, também as fotos, a conexão com as pessoas. Por que elas se transformam sem cessar?

Há a espiritualidade. Buscamos incessantemente a felicidade e queremos superar o sofrimento. Isso nos leva a buscar incessantemente a terra pura e perfeita onde isso seria possível. Como um pássaro, hoje estamos pousados em uma situação e temos um nível de segurança. Ainda assim percebemos a presença do desequilíbrio e da aflição e nos preparamos para voar. Somos seres vagueantes, andarilhos sem descanso e sem rumo seguro. Cientistas, filósofos e psicólogos, curadores e regentes do mundo, todos passam por transformações. Também nascem e morrem. A inevitabilidade dessas mudanças é o ponto que nos une na busca pela transcendência.

Buda mostra que o engano cria as aparências. E essas aparências, quando brotam do engano, são impermanentes. Isso gera satisfação, o que nos leva à mudança.

Há a lucidez. O engano cessa, as aparências surgidas a partir disso se revelam. É a mente que todo cientista sempre buscou: aquela que leva adiante o conhecimento. É ela que vê além do que já existe, que encontra soluções e que é livre das próprias disposições internas.

Há a presença incessante. A mente estável, além das aparências, surge como uma experiência nítida que sempre esteve presente na vida, na morte e nos momentos de mudança. Quando dormimos há uma mente testemunha que não parece presente durante o sonho mas é a que nos relata essas imagens depois. É mais do que a memória, é a ação silenciosa que sustenta a aparência mágica daquelas que nos enganam. Ela mesmo que não aparece nos filmes, nos livros, na vida, mas se esconde nas aparências que produz. Viver é o flutuar por esses campos complementares em sua complexidade e magia em busca da terra pura.



(texto publicado na revista Vida Simples edição 160 - julho de 2015)

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