segunda-feira, 23 de maio de 2016

Os benefícios da crise


Pesquisas recentes sobre traumas têm incluído um olhar para as consequências positivas das experiências traumáticas, principalmente no que diz respeito aos efeitos sobre o desenvolvimento da personalidade pessoal e o crescimento interior.

Alguns dos sintomas e sinais de uma crise e de uma trauma são semelhantes - por exemplo, tristeza, isolamento, confusão, oscilações de humor podem estar presentes nos dois casos. No entanto, a direção que uma ou outra situação toma não o é. Por isso, é de grande importância distinguir o enfrentamento de uma crise, em que se mantém viva a possibilidade de superação, transformação e crescimento, de um processo de traumatização, em que, ao contrário, a pessoa passa a viver a paralisia e o congelamento internos que a imobilizam em torno do evento que não foi possível elaborar.

Elisabeth Kübler-Ross (1983) trabalhou, por longos anos, com pacientes terminais e distinguiu cinco diferentes etapas possíveis de serem atravessadas no processo de enfrentamento da proximidade da morte, bem como do luto enfrentado pelas pessoas que perdem entes queridos. Se tonarmos o luto como a elaboração de perdas, quaisquer que sejam elas, podemos reconhecer essas etapas na base de várias diferentes crises a que estamos sujeitos em nossa vida humana.

De forma bastante resumida, a primeira fase é a da não aceitação e do isolamento. Em geral, num primeiro momento as pessoas ficam entorpecidas pelo choque ou pela dor. Podem surgir atitudes como negação e recusa de enfrentar a situação, que funcionam como um mecanismo de defesa contra aquilo que ainda não é possível suportar. Numa segunda fase, podem surgir raiva e tristeza pela perda sofrida. Nessa etapa, é comum que se manifestem sentimentos de vazio, irritabilidade e agressividade, questionamentos sobre o sentido da vida, desapontamento, preocupação, assim como a busca por culpados e perguntas do tipo: "Por que ele (a) se foi?". A raiva, nessa fase, é um sentimento natural de externalização da revolta e uma reação contra o sofrimento impingido. A terceira etapa do processo de luto é designada como fase da negociação ou barganha. Por vezes, está ligada a fortes sentimentos de culpa ou ao arrependimento por ações feitas, bem como por aquilo que não foi realizado. É possível que surjam fantasias, especialmente nas crianças, de que essas ações ou omissões foram determinantes para o que ocorreu - "minha avó se foi porque eu era malcriado com ela", "se eu tivesse sido mais amoroso, minha esposa não teria adoecido". Se a pessoa está doente e vê a proximidade da própria morte tenta fazer promessas ou negociações - com os profissionais que cuidam dela e até com Deus - com o objetivo de manter as coisas como eram até então.

Um possível quarto estágio do processo de luto é a depressão. Ela tanto pode ser reativa como preparatória. A depressão reativa ocorre quando surgem outras perdas devido à morte, por exemplo, prejuízos financeiros, mudanças de status e de padrão de vida, bem como a perda de papéis no âmbito do grupo familiar. Já a depressão preparatória é o momento em que a aceitação está mais próxima, porque há processos retrospectivos, de balanço e de reflexão que, embora possam produzir abatimento e tristeza, já significam a elaboração do ocorrido. O último estágio é, por fim, o da aceitação. Quando se chega a ele, surge uma maior serenidade frente à morte, à perda e à separação. É o momento em que é possível expressar de forma mais livre os sentimentos, emoções, frustrações e dificuldades enfrentados e com isso de fato elaborá-los. Esses estágios não são regulares e podem ser vividos ou não de acordo,  mais uma vez, com as características pessoais de cada indivíduo.

Todas essas etapas precisam ser adequadamente atravessadas para que uma pessoa supere a vivência difícil e a vida para prosseguir. Os recursos e suportes necessários para as diferentes etapas devem ser propiciados, a fim de facilitar a evolução do processo. Às vezes, são coisas bem simples, como haver liberdade de expressar a raiva e todos os sentimentos experienciados, por mais difíceis e negativos que eles possam parecer. Também a presença de uma rede de apoio, como familiares, amigos e profissionais bem preparados vinculados à pessoa ou à situação enfrentada, é de grande e fundamental importância.

Sintomas

Caso as etapas de elaboração de uma perda ou da confrontação com uma realidade difícil não transcorram de tal forma satisfatória, um trauma pode se instalar. BerndRuf (2014) aponta para quatro etapas de desenvolvimento e efetiva instalação de um trauma. Ele diz que depois de um evento potencialmente estressor e que representa uma sobrecarga para o indivíduo, segue-se uma fase de choque com duração de um a dois dias. Aí podem se manifestar sintomas diversos, como uma experiência distorcida do tempo e do espaço, distúrbios perceptivos e diversas reações psicossomáticas (alergias, cefaleias, problemas digestivos, queda da imunidade etc.). Amnésias ou, ao contrário flashbacks recorrentes podem ocorrer. Atendi uma senhora que perdera o marido repentinamente por conta de um câncer agressivo que já havia evoluído muito quando foi descoberto. O único filho do casal, que tinha então 12 anos de idade e era extremamente apegado ao pai, reagiu aos poucos à perda de forma positiva, no entanto não se lembra de absolutamente nada do período que compreende a internação do pai, sua morte dez dias depois e as duas semanas seguintes. Aparentemente, ele elaborou bem o ocorrido depois disso, mas todas as lembranças desse período se perderam, sendo parcialmente reconstituídas em função dos relatos das pessoas próximas.

As oito semanas seguintes (aproximadamente) costumam ser decisivas para um bom encaminhamento do processo de elaboração. Começa a haver uma confrontação com a realidade e uma tentativa de integrar o que ocorreu. No entanto, sintomas relativos ao choque podem continuar se manifestando, embora de forma cada vez mais intensa. São eles: paralisias ou hiperatividade, depressão ou agressividade, medos e preocupações, pesadelos ou sonhos com o que aconteceu, problemas de concentração, isolamento, distúrbios do sono e da alimentação. É comum que as pessoas passem a evitar tudo o que pode lembrar o evento impactante, sejam locais, objetos, outras pessoas ou mesmo pensamentos e sentimentos. Para muitos, a experiência é de um certo congelamento interno, um amortecimento, e de vazio. Esses sintomas podem desparecer paulatinamente e se perder no período de quatro a oito semanas. Caso persistam além desse tempo, é possível que a pessoa desenvolva um distúrbio traumático. Nessas situações, cada sintoma pode se transformar em uma doença independente. O transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) é uma das consequências mais comuns dos traumas e precisa de tratamento.

Mais a longo prazo ainda, no caso de persistirem e se repetirem as experiências traumáticas ou mesmo os sintomas desencadeados pelo evento estressor, indicando que a experiência não pôde ser transformada, a estrutura da personalidade como um  todo fica ameaçada e é possível que sofra mudanças profundas e permanentes.

Vítimas que chegam a esse estágio crônico podem se sentir sob constante ameaça e tensão. Por causa disso, é comum que apresentem atitudes como hostilidade, agressividade, conformismo extremo, perda de sentido da vida, fracasso profissional ou nos relacionamentos, isolamento social e quadros depressivos. Outra consequência possível é um distorção nos valores e traços de caráter. É frequente que vítimas se tornem algozes. De forma incontrolável essas pessoas repetem o que ocorreu, seja sofrendo novamente a mesma situação seja infligindo sofrimento aos outros.

Luto ou reação traumática?

Para que um evento traumático seja superado, deveria se seguir a fase inicial de choque, em que se fazem presentes um certo atordoamento e atitudes caóticas, uma fase de reação, na qual a pessoa já consegue confrontar com a realidade, na tentativa de integrar o que ocorreu. Então, tem lugar uma fase de adaptação, em que se procuram compreender e esclarecer o que foi vivido, o que, se for um processo bem-sucedido, implica na dissolução do trauma. Todos esses estágios encaminham-se para uma fase de reorientação, quando a vida é reorganizada e surgem novas potencialidades e possibilidades. Esses estágios são semelhantes à fase de elaboração do luto.

Apesar da grande semelhança entre os processos de luto e de trauma, há também diferenças marcantes. Segundo Levine e Kline (2010), ao passo que o luto nem sempre está relacionado a um trauma, todo trauma compreende um processo de luto.

Vejamos algumas diferenças marcantes entre um e outro. Enquanto que na reação de luto se manifestam sentimentos de tristeza sem que estes agridam a autoimagem e a autoconfiança da pessoa, a reação traumática conduz a sentimentos de impotência e perda de segurança e confiança no mundo e em si mesmo. Ao passo que o luto leva à tristeza, mas essa pode se expressar, é comum que no trauma as pessoas sofram em silêncio.

Os sonhos podem ser observados na fase que se segue a um evento difícil e trazem informações importantes sobre o processamento do ocorrido. Enquanto que nos casos de luto é comum que principalmente as crianças sonhem com os falecidos, nos sonhos que emergem em meio a processos de traumatização o que é frequente é que elas sonhem consigo mesmas como sendo as possíveis vítimas dos acontecimentos.

Finalmente, um importante traço a ser observado é que os sinais e sintomas que se apresentam ao longo de uma vivência de luto vão sendo amenizados e desaparecem com o tempo, ao contrário do que ocorre nas vivências traumáticas que não são elaboradas, nas quais, com o passar do tempo, se apresentam um aumento e a intensificação dos sintomas provenientes do choque.

Situações limitadoras

Ora, não são apenas situações extremas, de grave comprometimento psíquico, que afetam a vida das pessoas, limitando suas possibilidades e experiências. Muitos pacientes chegam ao consultório se perguntando qual é o seu trama, o que teve um poder tão forte de paralisar áreas inteiras da sua vida. Suas histórias de vida carregam, sem dúvida alguma, dificuldades, mas algumas áreas funcionam bem, enquanto outras estão comprometidas - por exemplo, é possível que alguém se realize profissionalmente, mas perceba uma enorme desordem em sua vida afetiva; ou pode ser que embora com uma vida familiar razoavelmente equilibrada, se desespere em não conseguir se expressar em outras áreas, como do trabalho, da sexualidade ou socialmente.

Muitas vezes essas pessoas já associam certos sofrimentos vividos aos bloqueios que experimentam no momento presente e vêm em busca de se certificar disso, entender melhor seus impedimentos e desatar nós, de modo a poderem viver de forma mais plena.

De fato, não são apenas traumas que paralisam ou tolhem nossas vidas. Em outros níveis mais brandos, as rupturas ocorridas no aparato psíquico que não tiverem sido completamente superadas podem continuar manifestando seus efeitos, principalmente sob a forma de bloqueios de energia psíquica e da criatividade, para viver de forma satisfatória e que corresponda às aspirações internas pessoais. O caminho para essa realização pessoal encontra-se repleto de obstáculos.

Tal como na teoria psicanalítica, Jung, discípulo de Freud, que depois se afastou dele, criando sua própria teoria, a Psicologia Analítica, estudou com especial interesse as situações traumáticas, chegando, então, a um conceito que hoje já faz parte de nosso vocabulário, a noção de complexos. Segundo Jung, os complexos são grupos de conteúdos psíquicos que se separam da consciência devido a situações traumáticas ou não elaboradas. Uma vez que a consciência não consegue lidar com tais conteúdos, precisa retirá-los do seu campo de ação.

Segundo Stein (2006), Jung descreve a estrutura do complexo como sendo composta por um núcleo formado por esses conteúdos que foram retirados da consciência - imagens associadas ao evento traumático e memórias congeladas e reprimidas -ao qual vão, então, se associando novas experiências de teor emocional idêntico. Por exemplo, à emoção decorrente da experiência de abandono paterno é possível que uma pessoa vá associando ao longo da vida outras experiências - e suas respectivas imagens e emoções - de abandono ou ruptura com outras figuras de autoridade e apego, sejam elas um chefe, o marido, amigos e assim por diante.

O efeito disso é que os complexos vão se fortalecendo e passam a restringir cada vez mais a liberdade de atuação da pessoa, roubando sua possibilidade de escolha e de decisão. Os conteúdos encapsulados e apartados da consciência irão determinar que a pessoa não disponha de seus recursos internos para lidar com determinadas  situações. A simples suposição de um abandono, por exemplo, pode disparar certas atitudes defensivas, que além de estarem repletas de ansiedade, medos e sofrimento, não são eficazes e talvez até desencadeiem de fato aquilo quer mais se deseja evitar.

Tal como os sintomas, os complexos são indicativos de bloqueios no curso de energia psíquica, são sinais de alarme de que algo essencial não está indo bem no campo da psique. Suspender o bloqueio e ampliar a consciência é de fundamental importância para lidar com as restrições e a falta de liberdade que sintomas e complexos impõem.

Amadurecimento

Se existe um ponto de confluência para todas essas diferentes situações é o potencial que  elas carregam de, uma vez atravessadas, representarem uma transformação indescritível na vida, um divisor de águas que representa um enorme crescimento, um ponto a partir do qual a vida realmente ganha sentido.

Retomando a analogia inicial da psique com o corpo físico, podemos dizer que assim como o organismo pode sair fortalecido de uma doença ou trauma que superou, também podemos amadurecer internamente e nos fortalecer ao atravessarmos uma crise. Muitas pessoas relatam mudanças realmente significativas em suas vidas depois que superaram experiências difíceis ou traumáticas. É possível que todos nós saibamos por experiência própria que crises existenciais e golpes do destino, quando elaborados positivamente, nos ajudam a crescer.

Por muito tempo, as pesquisas sobre traumas concentraram-se quase que exclusivamente nos efeitos psicopatológicos de tais experiências. Mais recentemente, no entanto, tem-se incluído nesses estados um olhar para as consequências positivas das experiências traumáticas, no que diz respeito aos efeitos sobre o desenvolvimento da personalidade pessoal e o crescimento interior.

O que se tem verificado nos estudos científicos recentes é que o risco de distúrbios psíquicos guarda uma relação equitativa com a configuração de oportunidades e chances de desenvolvimento na vida das pessoas atingidas por situações indesejadas e impactantes. Isso significa que um choque ou trauma também pode mudar a vida positivamente.

Segundo Viktor Frankl (1998), o fator essencialmente impulsionador para o ser humano é a busca de sentido para a vida. No momento em que uma pessoa se pergunta sobre o sentido da vida, ela expressa o que há de mais essencialmente humano em si mesma.

Semelhante à noção de individuação de Jung, essa busca pelo sentido da vida diz respeito à tentativa de encontrar aquilo que exprime a própria unicidade e integralidade, a realização como indivíduo singular, capaz de viver da forma mais plena e autêntica possível.

Ora, um dos fatores essenciais da resiliência é justamente a possibilidade de constituir novos sentidos. É apenas quando a pessoa integra o ocorrido, simbolizando e interpretando o que ocorreu numa perspectiva de crescimento pessoal, é que ela volta a encontrar motivação para seguir vivendo.

Sendo assim, entendemos que tudo que propiciar e favorecer a retomada do sentido, incluindo aí uma revisão total de valores e a construção de novos significados e de entendimentos da vida, propiciará a retomada do equilíbrio psíquico e poderá significar até mesmo uma condição de mais saúde mental. Como muitas pessoas acabam descobrindo, a desconstrução e reconstrução desses sentidos podem ser fatores essenciais para a descoberta de uma real direção para a vida pessoal. Nesse caso, os perigos de ruptura interna e os sofrimentos enfrentados passam a representar uma verdadeira possibilidade de considerar a própria experiência de forma profunda e reformulá-la.

Crises e traumas, quando enfim elaborados e integrados, são uma oportunidade única na vida - difíceis, mas com um potencial incomparável de crescimento e evolução.

Consequências da superação

O amadurecimento produzido pela superação de situações reflete-se em novas possibilidades de via, que implicam num relacionamento diferente consigo próprio, com as outras pessoas, com o mundo e com os próprios fatos e condições de vida. Os efeitos biográficos positivos de psicotraumas vencidos estão relacionados a pelo menos quatgro dimensões da vida:

Relacionamentos humanos - após uma bem-sucedida superação de estresse intenso, com frequência, nota-se maior sensibilidade no trato com os outros e um aprofundamento nas relações com a família e com os amigos, valorizando-se essas relações e havendo uma maior abertura nas formas de comunicação e de vínculo.

Perspectivas de vida - após a superação positiva de experiências de vida difíceis, também pode haver uma ampliação da perspectiva de vida, com a descoberta de novos interesses e a elaboração de novas metas e planos. A própria vida é reconfigurada, incluindo-se aí valores e projetos mais significativos, positivos e de crescimento. Isso pode envolver a abertura, questionamentos e interesse mais profundo a respeito de temas existenciais, incluindo ou não interesses relativos à espiritualidade e à religiosidade.

Amadurecimento da personalidade - em geral, como resultado, da superação positiva de uma situação traumática, segue-se também um aumento de fatores pessoais positivos, como autoconfiança, autoconhecimento, força e segurança emocional, ou seja, um amadurecimento da personalidade como um todo. Lidar de forma bem-sucedida com uma situação difícil constrói uma sensação de segurança para enfrentar desafios futuros. A superação dá confiança de que será possível enfrentar outras situações da maneira igualmente positiva e construtiva.

Valorização da própria vida - é comum que depois da superação de uma crise ou situação traumática, as pessoas estabeleçam com mais facilidade aquilo que é prioritário para elas e diferenciem o que é importante daquilo que não tem importância. Com frequência se ouve nos relatos dessas pessoas que elas começaram a viver de forma mais consciente e a valorizar mais a vida, dando mais importância àquilo que antes não reconheciam como valioso em suas vidas. Esse redimensionamento dos fatos e circunstâncias é um dos efeitos mais significativos do enfrentamento de uma condição de impacto inicialmente negativo.



(texto publicado na revista Psique nº 113 - ano IX)

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