terça-feira, 24 de maio de 2016

Como parar de se achar - Gustavo Gitti


Um breve percurso de contemplação para você confiar na mente livre por trás da pessoa que você pensa que é

"Quem aqui considera possível liberar o ciúme e as outras aflições?", perguntei isso em um curso sobre relacionamentos, sem me referir à dificuldade, mas à possibilidade. Ninguém levantou a mão. Em outra conversa, uma mulher disse: "sou um fracasso tão grande... mudar é mesmo possível?". Para quem se sente condenado a chegar ao fim da vida arrastando, no máximo, uma versão melhorada de si mesmo, sugiro uma contemplação.

Tome seu tempo para lembrar de como você passou a vida inteira se achando: criança, adolescente, adulto, idoso, ganhador ou perdedor, identificado com diferentes autoimagens, vozes internas, impulsos, visões de mundo, gostos e desgostos, roupas, lugares, narrativas, urgências, tudo o que chamava de "eu". Abra o Facebook ou saia na rua para observar como cada pessoa anda por aí acreditando realmente ser alguém com tais e tais características. Uma pessoa se achando taxista no mundo de taxista com problemas de taxista, outra pessoas se achando empreendedora falando e se vestindo igual a uma empreendedora.

Agora faça um experimento de pensamento: se passarmos 49 anos jogando queimada em uma quadra, em que momento o jogo vai se fixar na quadra a ponto de impedir que alguém subitamente comece a jogar vôlei? O espaço nunca chega a se tornar um espaço de queimada. É incrível! Ainda que se construa um estádio de futebol, isso não impede que um ser livre use o lugar para um show de rock. Não tem como fazer um estádio se firmar como um estádio de  futebol. Do mesmo modo, sua casa nunca vira de fato sua casa, uma pessoa nunca vira de fato esposa ou marido, e assim por diante. Impossível remover essa plasticidade presente até mesmo nas estruturas mais consolidadas.

Se antes de ser flautista você era baterista, e se depois de ser namorada você vai respirar solteira, sua natureza é livre de flautista e livre de namorada - não só antes ou depois, mas principalmente durante. Enquanto surtamos, tem algo em nós que não surta. Há algo na pessoa que não casa nem descasa, por mais que ela se ache a pessoa mais casada ou descasada do mundo.

Nossa mente é tão livre que consegue criar até mesmo a experiência de esquecer de sua liberdade, de se aprisionar em condicionamentos. Pode procurar, não existe uma base na qual podemos designar "eu sou isso". Não sou realmente isso ou aquilo, apenas brinco de ser. Por trás de cada pessoa, não há algum tipo de essência, mas uma abertura. Essa confiança - de que nossa mente é originalmente livre e de que podemos ampliar esse reconhecimento - é o que permite toda e qualquer transformação. Caso contrário, nos deprimimos assim que falhamos em estabilizar uma identidade.

Quando tudo-aquilo-que-você-acha-que-é-entrar-em-crise, talvez seja o momento para não consertar, para deixar a queimada acabar e ver o que surge no meio da quadra. Onde mais poderíamos nos perder que não no próprio espaço livre onde sempre brincamos? Sobre ludicidade, conversamos no mês que vem.



(texto publicado na revista Vida Simples edição 161 - agosto de 2015)

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