sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Elke foi sagrada e profana, como tinha de ser - Pedro Diniz


"Fantasia é vestir uma roupa no Carnaval e despi-la na Quarta de Cinzas", disse em 2015 a mulher que antevia estilos

Uma das últimas vezes em que Elke Maravilha, morta em 16 de agosto, falou à Folha, foi em 2015. Ela discorreu sobre um assunto incômodo para muita gente: a velhice. Ex-modelo, havia topado posar para o estilista mineiro Lucas Magalhães e, por telefone, disse que havia nascido velha.

"Ainda bem, porra, porque se tivesse esse tal espírito de jovem, começaria a querer esticar [o rosto, com cirurgias], a querer reter a beleza dos 30. Isso é desnecessário. O caminho é de ida, sempre."

E indo, ela foi, mas não sem levar "muita cuspida na cara". Foi "grande amiga" e modelo da estilista Zuzu Angel (1921-1976), para quem se vestiu de Maria Bonita num dos desfiles mais emblemáticos dos anos 1970. Foi "a jurada diferente" do Chacrinha e, só depois, de Silvio Santos, para quem foi jurada em seu show de calouros.

Desconstruiu sua persona para muitos personagens - "de síndica a velha decrépita" -, mas dizia ter orgulho de nunca ter desconstruído a si mesma. "Nunca tirei e nunca tiro a calcinha."

Mas o que mais chamava a atenção no visual da "velha feia que, como toda velha, quer ficar bonitinha", era essa capacidade de antever estilos, esculpir uma beleza que ninguém entendia, porque, ela sabia, o ser humano é preconceituoso. Afinal, "somos chimpanze´s, o bicho que não respeita as diferenças".

"E também é feio. Os deuses erraram com a gente. Temos sempre de arrumar uma coisa, por dentro e por fora. Até dente temos de arrumar."

Elke provocou, como fazem os verdadeiros estetas de um tempo. A peruca sempre "estranha"? Ah, criança, você sabe, o cabelo europeu é uma bobagem. Eu quero mais. O cabelo soma a mulher, e me multiplica."

O mix de estampas, lenços e correntes? "Não interpreto alguém que não sou. Não é fantasia, é o que eu uso. Fantasia é vestir uma roupa no Carnaval e, na Quarta-Feira de Cinzas, despi-la."

A moda dos trópicos ficava seduzida pela beleza europeia que ela, conscientemente, rechaçava, como se tentasse provar sua nacionalidade brasileira a despeito da Rússia gravada na certidão de nascimento.

Nunca seguiu moda, porque a vida como uma espécie de prisão. "Tem roupa que uso há várias décadas. Mas quando a coisa [a roupa] que visto começa a ter influência, já mudo. Não gosto de uniforme, e a moda hoje é isso, um uniforme. Chato, não é?"

Contra a chatice, tinha a receita: "Se algo está na moda, não significa que serve na gente, entende? Se insistir [no desajuste], vira um erro ortográfico em você."

Excêntrica para nossos padrões de "chimpanzé", nutria amor por uma "colar sagrado", com mais de 500 pingentes.

Transformou a peça, que não usava no dia a dia devido ao peso e ao comprimento - do pescoço até as coxas, em um relicário da vida. Lá, estão gravadas memórias de quem cruzou o seu caminho e os lugares que visitou.

Começou com uma corrente e uma figa, compradas em um mercado de Salvador. Hoje, a peça é um livro de história da cultura mundial. Até uma chave do cemitério de Colatina, no Espírito Santo, tem.

"É religiosidades de Minas, da Rússia, do Japão. Tem coisas da Grécia, onde vivi. Tem figuras sagradas e também um caralho. Sagrado e profano, como tinha de ser."

Medo? Nenhum, porque sabe, crianças, "ficar velho é bom, só não pode ficar ultrapassado". Ela nunca ficou.


(texto publicado no jornal Folha de São Paulo - Folha Ilustrada C6 - 18 de agosto de 2016)

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