sábado, 20 de agosto de 2016

O desapego pragmático - Eugenio Mussak


Encontrei uma imagem no Facebook que me fez parar para pensar. Era de um homem com seu cão, caminhando, vistos de costas, tendo à frente algumas árvores e o Sol no horizonte. Acima, uma pergunta: "Você sabe por que seu cão é mais feliz do que você?". Para encontrar a resposta, bastava olhar para os balões de pensamento acima da cabeça de ambos. Na do homem, seus desejos: um carro, uma bebida, uma casa, entre outros. Na do cachorro aparecia ele próprio ao lado do dono, vistos de costas, tendo à frente algumas árvores e o Sol no horizonte.

Em resumo, o cão era mais feliz porque desejava ter exatamente o que já tinha, enquanto o homem sempre projetava seus desejos para aquilo que ainda não possuía. Como jamais teria tudo o que desejava e, mesmo que tivesse, passaria a ter novos desejos, o homem estaria condenado a nunca conhecer a felicidade verdadeira. Dá o que pensar, não é mesmo? Confesso que passei a olhar para a Preta e a Branca, minhas cachorrinhas sempre presentes ao meu lado, com mais respeito, por sua sabedoria natural.

A metáfora tem a ver com o desapego das coisas e a valorização das experiências. Enquanto o homem se ocupava em pensar sobre as coisas e as conquistas que queria ter, o cão tratava de viver aquele momento e aproveitar a experiência de estar vivo. Há algo da sabedoria budista na postura desse cão. É que um dos mais importantes ensinamentos do budismo é justamente aquele com o qual, eu ocidental contemporâneo, criado na sociedade de consumo, tenho mais dificuldade: o desapego. Buda teria percebido que a razão maior do sofrimento é o apego, pois, enquanto formos apegados a coisas que pertencem ao mundo físico, ao plano tangível, estaremos ocupando nossa mente com coisas que não são essenciais, e a busca disso nos afasta do essencial, onde estaria a verdadeira felicidade. Nós, os apegados (quase todos nós, vamos concordar), sofremos porque somos impermanentes, estamos aqui de passagem, e impermanência não combina com apego, definitivamente.

Só que essa visão budista ultrapassa as crenças religiosas, uma vez que é dotada de uma lógica irrefutável. Qual o sentido de passar a vida apegado a coisas que, com certeza, só serão suas durante o tempo que dure sua vida? Repare quanta energia você gasta para manter o que, no fundo, nunca lhe pertenceu e nunca pertencerá de verdade.

Os budistas relacionam desapego com felicidade. A página em que encontrei a metáfora é da inglesa Jetsunma Tenzin Palmo, a primeira ocidental a se tornar monja budista na Índia. Durante sua longa preparação, ela se manteve em meditação e contemplação, o que incluiu passar 12 anos dentro de uma caverna no Himalaia, três dos quais ela ficou absolutamente isolada.

Pessoalmente, acredito que nós, que não tivemos tal experiência, não temos como assumir um desapego absoluto dos bens materiais e das relações afetivas, mesmo sabendo que podemos perder tudo isso a qualquer momento, e que um dia iremos embora sem levar nada do que consideramos ser nossa posse. É que o desapego não faz parte de nossa cultura, de nossa educação, de nosso modelo mental. Entretanto, não foram poucas as vezes em que me percebi refletindo sobre o quanto o modelo do apego me fazia mal.  Quantas vezes não fiz novas conquistas, não experimentei novas alegrias, não atingi novos patamares de sabedoria, pelo simples fato de estar profundamente apegado ao que tinha conquistado até então. A conquista só acontece depois da abdicação, concluí.

Um amigo me contou que recusou uma oportunidade profissional espetacular porque teria que passar um bom tempo no exterior, por causa do apego à sua casa. "Só iria se eu pudesse levar  minha casa junto", me disse. Como ele não é um caracol, recusou o convite, para depois ficar se lamentando, pois, ao escolher não abrir mão de morar onde gostava tanto, asbriu mão de um upgrade em sua carreira. Isso é o que os americanos costumam chamar de trade off, uma escolha que é uma troca. Ao trocar a promoção pelo conforto da casa não teria sido traído pelo apego? E se tivesse ido - você pode perguntar - ele não estaria demonstrando apego exagerado à sua carreira, em detrimento da fidelidade às suas origens? Sem resposta.

O fato é que muitas vezes temos que exercitar o desapego em nome de outros valores. Não é um exercício simples, especialmente para quem não passou 12 anos em uma caverna, nem tem o objetivo de atingir o nirvana em vida. Mas há muitos ocidentais, eu inclusive, que não são budistas mas têm simpatia pela profundidade de suas mensagens e pela placidez de sua prática. O conceito do desapego, uma vez compreendido, passa a ser muito útil.

Para um budista, o desapego tem a ver com elevação espiritual, com o distanciamento do que é volátil e a valorização do que é essencial. Para um não budista, exercer algum desapego sem ser decorrência de fé religiosa, pode ser um sinal de inteligência prática, pois o apego pode ser inimigo do progresso. Estar apegado a velhos pertences não abre espaço para os novos. Não conseguir fechar o ciclo de uma relação afetiva impede que se abra outro, talvez bem mais rico e prazeroso.

O desapego tem seu lado pragmático, sim. Não somos poços sem fundo onde cabe tudo o que acumulamos. Na verdade somos pequenas caixas de joias onde só cabem aquelas que usamos, que amamos e nos fazem bem. Não podemos ser como o padre Rodrigo Mendoza, interpretado pelo ator Robert de Niro no filme A Missão, que caminha pela floresta e até sobe cachoeiras carregando uma rede cheia de velhas pratarias, que prejudicam seu avanço. Pois tem muita gente assim, que avança pela vida carregando pesos mortos, de coisas ou de culpas. Falta-lhes desapego. E é impressionante como o apego é confundido com amor. Costumamos nos apegar àquilo ou àqueles que amamos. Ao querer manter ao lado alguém que você ama, mesmo contrariando a vontade do outro, você não estará infelicitando o objeto de seu amor? Talvez fosse bom ouvir mais uma reflexão da monja Palmo. Segundo ela, o apego é o oposto do amor. Enquanto o apego diz: "Eu quero que você me faça feliz", o amor declara: "Eu quero que você seja feliz.".


(texto publicado na revista Vida Simples edição 169 - abril de 2016)

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