O amor romântico, a união de almas, está desaparecendo. Sonham com ele, mas os relacionamentos ficam mais fluidos
Após um relacionamento, um amigo português se presenteou com uma viagem às Ilhas Maldivas. Foi sozinho para um hotel fantástico. Pretendia passar seu aniversário calmamente. Estava bem. Mas, ao chegar, fornecera seus dados pessoais. Por tradição, o hotel comemora o aniversário dos hóspedes. Ao final de seu jantar, uma comitiva de garçons com um bolo de velas acesas aproximou-se de sua mesa solitária cantando “Happy birthday”. Foi um horror.
– Era horrível suportar os olhares de piedade dos turistas nas outras mesas, diante de minha solidão.
A pessoa sozinha é vista como uma fracassada. Alguém que não conseguiu encontrar alguém. Há algo de errado com ela, pensam. A crítica gastronômica americana M.F.K. Fischer, autora de Cozinha de A a Z, fala da experiência de ir sozinha a um restaurante, comum em sua vida. A tendência é sentar a pessoa em algum lugar ao fundo. Quem quer contemplar um pobre solitário? Uma vez, eu mesmo, cometi a loucura de ir sozinho a um rodízio na Rodovia Raposo Tavares, em São Paulo. Era freguês, comia lá sempre, pois morava muito perto. Mesmo assim, os garçons passavam voando com os espetos diante de mim, até que tive de gritar, implorar, para receber um pedaço de alcatra.
No passado, a mulher que não se casava era tratada como uma espécie de empregada da família. O maior terror das garotas era ficar para tia, ou seja, solteirona. Era ela quem cuidava dos pais velhinhos. Depois, ia morar na casa de algum irmão ou irmã, onde era tratada como um estorvo, embora cozinhasse, lavasse e passasse. Na divisão da herança, ficar com um pedaço de terra para quê, se era sozinha? No máximo, um enfeite de porcelana que pertencera à mãe. O preconceito continua, sob formas disfarçadas. Alguém consegue ficar sozinho numa festa? Sempre alguém se aproxima, às vezes instigado pelos amigos.
– Vai dar um apoio para ela, está sozinha! Quebra o galho da coitada!
Uma família é definida pelo encontro de duas pessoas que se amam e constroem um lar. Mas se as famílias estão mudando, o amor também não? A transformação começa já no vocabulário. Antes namorada era alguém com quem se pretendia um compromisso. Hoje, pode ser simplesmente uma pessoa com quem o rapaz esteja saindo, uma espécie de amiga íntima, sem outros planos. Um casal se apresenta como “meu marido” e “minha mulher”. Mas de fato seriam, no conceito de antigamente, namorados. Estão juntos, mas em casas separadas. A relação é profunda, sim. Mas pode acabar a qualquer momento. As palavras foram se tornando fluidas. “Ficar” é uma agarração sem compromisso. “Ficante” é alguém que se vê até com frequência, mas não é namoro. Mas a ficante às vezes é apresentada como namorada ou mulher. Apresenta-se uma amiga que de fato é namorada. Palavras que possuíam significados objetivos foram ganhando gradações, coloridos. Certa vez fui fazer uma reportagem sobre casais que moram separados. Falei com uma amiga, que possuía uma relação estável e pública. Apresentava-o como seu marido a todos, e ele a ela como sua mulher. Mas não queria dar entrevista. De repente, a resposta:
– Sabe o que é? A mulher dele não sabe de nós!
Ahnnn? Bem, em termos jurídicos já fora do palavreado comum, ela seria amásia. No dia a dia, amante. Mas alguém fala em amante? Ui, amásia? É namorada. Ou até noiva. Mas o noivado não é resultado de um compromisso. Só de um dia especialmente mais amoroso. Assim como “noivaram”, param de se falar. Ou a pessoa diz que está namorando. E depois descubro que ainda não conheceu o par. É só pela internet. Os mais sólidos dizem ter companheira, companheiro. Mas isso não dá a impressão de que o amor virou uma encontro de escoteiros?
A confusão de significados mostra que o amor romântico, a união de duas almas dos poetas, está desaparecendo. As pessoas sonham com ele. Mas relacionamentos são fluidos. Basta uma noite para dizerem que estão casadas! Ninguém suporta ficar sozinho. Cada vez com mais frequência, ficam sozinhas junto com alguém! Ou se apaixonam, mas só dura algumas semanas. O amor não é duradouro nem fator de união das famílias, como no passado. Para “casar”, basta emprego. Mas se os dois têm, é fácil separar. Não é necessário um par para sobreviver. Mas todo mundo quer um amor, dá para entender? Ninguém quer ser o solitário num restaurante no dia do aniversário. Só que eu vejo, cada vez mais, as pessoas tendo relações fugazes. E já se preparam para uma vida solitária, de eternos “namorados”.
(texto publicado na revista Época nº 910 - 16 de novembro de 2015)
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