Nossa repórter economizou cada gota d'água e concluiu: se não fizermos nada, nós é que vamos entrar pelo cano
"Quando recebi o desafio de cortar pela metade o consumo de água aqui de casa, minha primeira atitude foi consultar meu marido, talvez na esperança de que ele dissesse: "Está louca? Nem sonhando". Mas o Lucas respondeu "por mim, tudo bem". Então, sem pensar mais, aceitei! E, no dia seguinte, quase me arrependi.
Afinal, como baixar tanto o gasto de água numa casa com dois filhos pequenos - Marcelo, de 3 anos, e Patrícia, de 1 - que vivem se sujando e sujando tudo ao redor? Além disso, já praticávamos várias atitudes "corretas" antes da missão, e imaginei que não teríamos muito mais a fazer para economizar.
Moramos em um apartamento, em Santos (SP), então não lavamos nem quintal nem calçada com mangueira. As plantinhas ficam na varanda, onde tomam chuva. Nos dias de sol, um pequeno regador dá conta de todas. A limpeza sempre foi só com pano úmido e desinfetante. Nossas torneiras já tinham um sistema conhecido como aerador, que reduz o fluxo pela metade (você nem sente!). E, na hora de lavar a louça, era tudo ensaboado primeiro e enxaguado de uma vez só.
Os vasos sanitários são do tipo caixa acoplada. Há modelos mais econômicos, com opção de descarga para "sólidos" e "líquidos", mas os de casa gastam 6 litros por acionamento, bem melhor do que as válvulas, que chegam a usar 20 litros por vez. Em casa nunca se escovou os dentes com a torneira aberta. E por aqui também já fazíamos xixi no banho, prática que, apesar de parecer meio estranha, economiza pelo menos uma descarga por dia. O Marcelo adora essa.
Com tudo isso, eu achava que seria impossível reduzir a conta de água. Nossos números, porém, diziam o contrário. Consumíamos 216 diários por pessoa. Era mais do que os 150 litros do consumo médio da Baixada Santista, onde moramos, ou do que os 175 litros da Grande São Paulo, região que enfrenta uma grave crise de abastecimento. E é o dobro do consumo ideal per capita recomendado pela Organização das Nações Unidas (ONU): até 110 litros diários. Fiquei sem desculpas.
Meu plano
No fundo, eu sabia desde o início quais eram os grandes vilões de gastança doméstica: a máquina de lavar roupas e os banhos longos. Precisava de um bom plano e muita coragem para enfrentá-los. Mas, como você sabe, na vida real nem tudo sai como planejado. Logo de cara, uma virose, dessas de vômito e diarreia, acometeu toda a família. Foram muitas roupas e lençóis para lavar, além de banhos extras, o que atrapalhou os primeiros dias de missão. Em seguida, o Marcelo decretou: estava grande demais para usar fraldas, mesmo durante a noite. Achei que seria injusto pedir a ele que esperasse um mês. O problema é que, nesse começo de desfralde noturno, as "escapadas" estão frequentes, e tive de trocar a roupa de cama dele quase todo dia.
Então, fiz o que pude para a máquina de lavar trabalhar menos. Substituí as toalhas de mesa de pano, trocadas diariamente, por uma de plástico. Também passei a tirar a roupa da Patrícia na hora das refeições e fiquei bem mais complacente com certas sujeiras. Por que trocar a blusa manchada de suco se as crianças iriam sair e se sujar na praia?
Os banhos foram a parte mais complicada. Na hora de escolher nossa ducha, já tínhamos optado por um modelo de baixa vazão e ainda colocamos um redutor - assim, dava menos culpa esticar um pouquinho o tempo do banho. Então, agora, para aproveitar cada gota do chuveiro, decidi deixar um balde dentro do boxe. Com isso, aquela primeira água fria, que ia direto para o ralo, poderia ser armazenada e usada para outros fins, como substituir as descargas.
Antes de reduzir o tempo de banho das crianças, expliquei que a água do mundo está acabando e que, para todos terem o suficiente, ninguém pode abusar. O Marcelo entendeu o recado, mas, em plena fase de egocentrismo infantil, me disse que queria usar a cota dele e de todas as outras pessoas também!
Achei graça, claro, e fiquei pensando se minha explicação estava correta. Será que a água do planeta está mesmo acabando? Foi uma professora da Universidade Federal de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, quem me ajudou a entender o panorama. Jussara Cabral Cruz, que também preside a Associação Brasileira de Recursos Hídricos, me disse que o volume de água no planeta permanece inalterado, mas sua disponibilidade, ou seja, nossa chance de ter acesso à água de qualidade, pode, sim, estar ameaçada: "Há indícios de que a temperatura na Terra esteja se elevando. Isso altera o equilíbrio da água nos oceanos, na atmosfera e no continente. Em muitos locais, o regime de chuvas vem se transformando, com chuvas mais intensas e rápidas".
Numa cidade grande, onde o solo é impermeabilizado, a chuva intensa costuma provocar enchentes. Essa água fica suja e, depois dos estragos, segue seu caminho em direção ao mar, sem abastecer as represas, sem se infiltrar na terra e sem alimentar os lençóis freáticos. É, portanto, uma água indisponível.
Isso, porém, não significa que estamos destinados a viver sob escassez nas grandes metrópoles. "A engenharia moderna traz várias soluções. A água das chuvas pode ser captada e infiltrada no solo", disse Jussara. Técnicas antigas ainda valem: algumas cidades europeias retiraram o asfalto e recolocaram o calçamento de pedras, mais permeável. Á água também pode ser transportada de um lugar para outro, e há até a possibilidade de dessalinização, embora seja uma alternativa cara." Muito mais barato e mais importante que coletar água de longe ou tratar água poluída é proteger as áreas de manancial e evitar a poluição dos rios.
O hábito faz um monte
Marcelo reclamou da nova rotina só por dois dias. Mais difícil é mudar o comportamento dos adultos. Lucas e eu estávamos comprometidos com os banhos bem rápidos, mas depois de uns dez dias, essa força de vontade começou a ceder... Não se muda de uma hora para outra um costuma de toda a vida. Foi conversando com uma moradora do Ibimirim, município do semiárido de Pernambuco, que percebi a importância de ensinar bons hábitos desde cedo. Maria do Socorro Neto, 47 anos, tem cinco filhos e sempre os ensinou a usar o mínimo possível de água. Lá, os banhos têm dois ou três minutos, e ela garante que ninguém acha ruim: "A gente faz assim desde criança e ensina os filhos a fazer igual".
Como já sentiu a escassez na pele, Maria do Socorro sabe que cada gota é preciosa. "Teve ano em que a gente só conseguia água quando o governo mandava caminhão-pipa." Por isso, mesmo em épocas de "abundância", ela espera acumular a louça e, para lavá-la, usa bacias, e não água corrente. "Quando a gente liga a torneira, perde a noção do tanto que está usando." Resolvi experimentar a técnica das bacias. Confesso que tinha certo preconceito, mas percebi que as louças ficam muito bem lavadas.
E sabe essa minha tentativa com o balde de não desperdiçar a água dos banhos? Socorro está muito à frente. Com a ajuda de uma ONG, ela colocou em casa um sistema que armazena a água do chuveiro e das torneiras. Depois do tratamento em um reservatório enterrado no local, a água pode ser reutilizada. "Foi bem fácil fazer a adaptação", garante Socorro que, desde então, tem água para uma horta, um viveiro de mudas nativas e uma pequena criação de galinhas. É claro que a reutilização seria diferente numa cidade grande, mas o importante é reaproveitar.
Além da nossa casa
Outro desafio por aqui foi descobrir como usar água de forma mais eficiente na máquina de lavar roupas. Li o manual de trás para a frente e não vi menção sobre quanto cada ciclo utiliza.
A falta de informação foi um problema apontado por Glauco Kimura de Freitas, coordenador do programa Água para a Vida, do WWF Brasil. "O cidadão desconhece o todo, acaba só com a visão do que acontece da torneira para a frente. Seria interessante termos um selo, como existe hoje do Inmetro e do Procel, baseado no consumo da água. E também conhecer a pegada hídrica dos produtos, quanto de água eles gastam para ser produzidos." Para ele, cobrar mais responsabilidade das empresas pode, sim, ajudar.
O Brasil é privilegiado: tem 3% da população mundial e 12% de toda a água doce do planeta. Com água em abundância, até hoje a maioria das pessoas não se preocupava muito com a questão. A atual crise de abastecimento pdoe ter, portanto, um efeito colateral positivo: aumentar a conscientização. "Nosso tratamento de esgoto é precário e falta planejamento na gestão hídrica", disse Glauco. "Mas temos uma das melhores leis do planeta nesse assunto, a chamada Lei das Águas, de 1997. Precisamos colocá-la na prática."
Mesmo com os percalços, todas as ações fizeram o consumo mensal aqui de casa cair de 26.000 para 16.000 litros. Não foi o corte pela metade proposto pelo desafio da revista, mas fiquei satisfeita com a redução de 38,5%, porque acredito que seja uma mudança duradoura e que nossa conta de água vai se estabilizar nesse novo patamar. Além de ter unido a família, essa missão nos fez valorizar ainda mais esse bem precioso - mesmo que o consumo de casa seja pequeno se comparado ao de uma fazenda ou uma indústria. Ah! Ainda me falta uma tarefa: entrar em contato com a fabricante da máquina de lavar roupas, cobrando mais informações - e providências! Um pequeno esforço para que Marcelo e Patrícia, no futuro, tenham água boa nas torneiras.
(texto publicado na revista da Droga Raia nº 38 - jun/jul de 2014)
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