sábado, 16 de maio de 2015

Irena Sendler e a resistência à desumanização - Suzane Camargo (Planeta Sustentável)


Poucos momentos históricos da humanidade são tão emblemáticos ao revelar o quanto o homem pode se capaz de atos de barbárie e atrocidade quanto o Holocausto durante a Segunda Guerra Mundial. Seis milhões de judeus foram assassinados em campos de concentração.

Mas enquanto consciente ou inconscientemente muitos se silenciaram sobre o que estava acontecendo, outros se levantaram contra o terror. Uma destas vozes foi a de Irena Sendler. A jovem enfermeira polonesa montou uma operação de resgate no gueto de Varsóvia e conseguiu salvar do extermínio mais de duas mil crianças.

Especialista em História Judaica, o professor universitário e diretor educacional do Projeto Marcha da Vida Universitária Celso Zilbovicius conhece a fundo a trajetória de Irena Sendler.

Na entrevista abaixo, Zilbovicius fala sobre como Irena Sendler foi capaz de resistir e lutar contra a barbárie e como todos nós podemos fazer o mesmo.

Dentre tantas histórias e relatos de heroísmo durante o Holocausto, por que a de Irena Sendler se tornou tão especial?

Temos de fato inúmeros relatos de pessoas que salvaram judeus, mas Irena tem duas questões principais que se destacam na história dela. A primeira é que antes da operação de salvamento das crianças, ela já tinha uma estratégia de ajudar pessoas que estavam morando no gueto de Varsóvia. Irena trabalhava numa associação de bem-estar social na capital da Polônia que conseguiu documentos para poder entrar no gueto e levar alimentos, roupas e medicamentos. O outro ponto que torna a história dela tão especial é a coragem de uma moça civil, sem vínculo com nenhum corpo diplomático como outros relatos que conhecemos, ter salvado milhares de vidas no maior gueto da Europa, onde moraram quase meio milhão de pessoas.

Além de salvá-las da morte, o que mais Irena Sendler fez pelas crianças judias do gueto de Varsóvia?

Ela não só salvou, mas fez questão de manter a identidade das crianças. Cada uma delas que era retirada do gueto, Irena guardava os dados (nome, filiação, data de nascimento) porque tinha a intenção de, terminada a guerra, entregar as crianças a seus familiares originais ou ao menos que soubessem de onde tinham vindo. Não era somente um salvamento físico, mas um salvamento de identidade.

A religião teria sido um dos motivos a motivar a polonesa a salvar tantas vidas?

Eu diria que o estímulo não foi somente do catolicismo - sem dúvida nenhuma Irena vinha de uma sociedade extremamente católica, como era a polonesa, mas acho que havia o fato dela vir de uma casa extremamente politizada. O pai dela era médico e filiado ao partido socialista polonês. A questão da ajuda ao próximo está ligada tanto ao catolicismo quanto ao ativismo político. Grande parte das crianças salvas acabou sendo entregue à famílias cristãs e conventos.

O senhor acredita que Irena Sendler teve noção da grandiosa dimensão do que fez?

Acho que sim. O que a levou de fato a começar a operação de salvamento foi perceber que as pessoas não se salvariam do gueto, principalmente as crianças. Entre 1942 e 1943, quando o gueto de Varsóvia já estava no auge da eliminação pelos nazistas, Irena tinha noção absoluta do que estava fazendo porque sabia que os judeus seriam exterminados. Quando a guerra terminou e o mundo tomou consciência do que realmente tinha acontecido, acho que ela percebeu ainda mais o quão importante foi aquilo que havia feito. Todavia, nunca se considerou uma heroína por conta disso. Ela dizia que deveria ter feito mais, salvado mais pessoas.

Na sua opinião, qual seria o maior legado da história da jovem polonesa?

Estamos falando de um momento na Europa do auge do processo de desumanização ou o que alguns chamam de banalização do mal. Ao mesmo tempo em que havia um processo histórico de absoluto extermínio - não havia um elemento político neste extermínio, é um componente absolutamente de preconceito e da forma como foi perpetrado nos  campos de extermínio, num continente que nos deu um legado completamente oposto a isso. Era o mesmo território que nos deu o Iluminismo, os ideais da liberdade e filosofia. Então ter um gesto como esse, corajoso, de uma mulher, sem ajuda, frente a um regime totalitário, militarizado e salvar milhares de crianças, é um evento da resistência contra o processo de desumanização e barbárie. Quando escutamos histórias sobre o genocídio do povo judeu durante a Segunda Guerra Mundial, percebemos que ao mesmo tempo que o ser humano foi capaz de construir cientificamente o processo de extermínio, houve seres humanos que tiveram o poder de resistir - não com armas, a este processo.

Que lições as gerações atuais podem ter com esta história?

Elas têm o compromisso de lutar contra a formação de regimes como esse que aconteceu na Segunda Guerra, capazes de gerar a barbárie e a desumanização de um outro semelhante. Acho que a memória de tudo isso serve como um alerta permanente de que precisamos ter todos os radares e antenas ligados. Ainda vemos hoje um crescimento de partidos de extrema direita na Europa com discursos xenófobos, muitas vezes com discursos antissemitas, mas também em relação a outras culturas e religiões, como o islamismo.

Irena Sendler nos provou que o ser humano pode ser mais forte do que imagina?

Sim, ela nos mostrou que temos capacidade de resistir frente a estas situações de barbárie. E infelizmente, nos revelou o quanto não fazemos também. Desde que a Segunda Guerra Mundial terminou, já nos deparamos com situações semelhantes como na guerra civil em Ruanda nos anos 90... E o que fizemos? Quanto o ser humano fez? Percebemos então o quanto o gesto de Irena é cheio de simbolismo. Ela era uma jovem de 30 anos que acabou sendo presa e sentenciada à morte. Irena ensinou a todas as gerações o quanto é importante sair da zona de conforto e enfrentar a barbárie.

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