quarta-feira, 27 de maio de 2015

"Lei da palmada" não garante fim da violência contra crianças

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Solange (nome fictício) já é avó e diz que, até hoje, não se conforma com o que viveu, quando  tinha 7 anos. Conta que, durante uma prova, foi acusada pela professora de estar colando e levou zero. Na época, as mesas eram mais compridas e cada uma acomodava duas alunas, mas a menina não enxergava bem e, por isso, nem que quisesse, poderia ver o que a colega escrevia. Tentou dizer isso à professora, mas ela nem ouviu. Na saída do colégio, ainda relatou o episódio à mãe que a buscava diariamente.

Em casa, a menina recebeu uma inesquecível surra de cinto. "O que doeu mais não foi a surra. Foi a injustiça, a falta de confiança. Não tive a chance de me defender. Pior, no dia seguinte a professora ainda me perguntou se havia apanhado. Menti. Disse que não, mas meus braços e pernas estavam cheios de marcas. O que eu aprendi? Que pais e professores podem se injustos. Que surra não funciona. Pode revoltar", disse Solange.

Essa foi a única experiência violenta que Solange guarda na memória. Apesar da mágoa, não acha que carrega traumas por isso, mas acredita que há outras formas de educar: "o exemplo dá mais autoridade e resultado. Filho de peixe, peixinho é", completa.

A "Lei da Palmada" ou Menino Bernardo" foi criada para evitar fatos parecidos, mas quem denunciaria? Até os nomes da nova lei que trata dos castigos físicos e do tratamento cruel ou degradante como formas de correção, disciplina e educação de crianças e adolescentes são questionados. Agora, pais ou qualquer um que descumpra a norma vai receber encaminhamento para um programa oficial ou comunitário de proteção à família, tratamento psicológico ou psiquiátrico e advertência.

Estima-se que 500 mil crianças são vítimas de violência doméstica de diferentes tipos no Brasil e uma lei, sozinha, não é suficiente para resolver essa questão. O problema é cultural e já exigiu medidas semelhantes em 24 países. Em alguns abriu a possibilidade até de prisão para os pais. No Brasil, ela não tem esse alcance, embora os agressores possam ser enquadrados em outros artigos do Código Penal.

A psicóloga Daiane Daumichen tem três filhos: Gustavo (7), Giulia (13) e Giovanna (14) e uma vasta experiência em consultório com famílias. Segundo ela, punir as palmadas apenas, sem entender o contexto em que elas acontecem, não funciona. Muitos se lembram do tempo em que o simples olhar da mãe ou do pai bastava para a criança mudar de comportamento. Era um tempo em que pais e filhos conviviam mais, faziam refeições juntos, a mãe estava sempre presente. Hoje a história é diferente. A família já não é o foco de todas as atenções da mãe. Boa parte delas tem uma jornada dupla e traz para casa o estresse do trabalho que pode acabar em "explosão" e violência.

A culpa, diz a psicóloga, é um gatilho para a falta de limites. "Os pais tentam compensar a falta de tempo e disposição para dar a atenção que os filhos merecem. Sentem-se frustrados com as próprias conquistas (nas redes sociais todos parecem tão bem sucedidos, felizes...). Enquanto isso os filhos vão testando até onde podem ir. O resultado é o que observamos. Jovens que não respeitam pais, professores... ninguém", complementa a especialista.

No consultório, Daiane Daumichen foi inúmeras vezes procurada por pais buscando solução para os problemas do filho, quando eram eles próprios que precisavam de ajuda. A educação depende de bons exemplos e de um discurso único, mesmo entre pais separados, caso contrário, na dúvida a criança seguirá o lado mais vantajoso. Filhos de pais violentos tendem a ter o mesmo comportamento.

Daiane lembra que durante a gravidez, a mulher é o centro das atenções, mas depois que o bebê nasce ela se vê diante de uma realidade diferente. Muitas vezes se sente desconfortável com a própria aparência, solitária e insegura com as novas responsabilidades e nem sempre tem o apoio necessário. Sem falar nos hormônios que a deixam mais sensível. A maternidade se torna, para muitas, numa experiência extremamente desgastante que, acumulada, pode resultar em violência. Para educar, os pais precisam de apoio, diálogo e parceria.

A cartilha do grupo "Crescer sem Violência" faz um alerta aos pais: "Lembrem-se que, quando vocês estão muito cansados ou bravos (seja consigo ou com o outro), não é um bom momento para disciplinar, na verdade é impossível".

Daiane Daumichen explica que manter o equilíbrio não é simples nem para ela. Cada idade exige uma tática. Um minuto (para cada ano de vida da criança) no "cantinho da disciplina" defendendo pela educadora Cris Poli, apresentadora da série de TV Supernanny, funciona. Daiane, entretanto, avalia que é importante que a criança saiba o motivo de estar ali. Não adianta a mãe disciplinar, o pai reprovar e a avó tratar o neto como coitadinho.

Com as filhas adolescentes a regra adotada pela psicóloga é outra. Uma nota ruim, por exemplo, exige mais dedicação aos estudos. Assim, nada de festas até a recuperação - explica. Essa é a última palavra. Tem que ser inegociável.

A marcação dos pais em cima dos filhos não é tão ruim quanto a indiferença. Para Daiane, o garoto Bernardo Boldrini - morto no interior do Rio Grande do Sul pela madrasta com o suposto apoio do pai - não tinha histórico de violência física. Foi vítima da indiferença e da omissão dos que o rodeavam.

A falta de "ritos de passagem" também dificulta a compreensão dos jovens sobre seus direitos e deveres. Em sociedades primitivas havia rituais que marcavam as diferentes etapas de vida dos seus membros e indicavam suas novas obrigações.Hoje há um conflito entre membros da própria geração. É difícil entender, por exemplo, quando o ficar vira namoro. Assim temos adultos de 30 anos agindo como adolescentes que se recusam a assumir responsabilidades e jovens maduros demais para a idade.

Para Jô Antiório, diretor jurídico do Colégio Padre Anchieta, hoje, há uma intolerância geral que se reflete também na escola e na família. Por muito pouco se discute no trânsito, exemplifica. Para ele, família e escola devem atuar em parceria na educação das crianças. Uma criança que não tem limites em casa acaba não aceitando as regras da escola.

Atuando há 20 anos na área da educação, Antiório presenciou muitos casos em que a falta de sintonia entre os próprios pais ou com a escola repercutiam no comportamento do filho. Eram pais que usavam os filhos em suas disputas pessoais. Em relação à escola, os pais precisam tomar cuidado com o que dizem. Um pai que não valoriza a educação, o papel da escola e do professor não pode esperar que o filho tenha um comportamento diferente.

O diretor do Colégio Padre Anchieta assinala: "é importante que os pais participem das reuniões com a escola não apenas para acompanhar a evolução do filho, mas para trocar experiências, oferecer sugestões que possam contribuir para a formação das crianças. Uma avaliação negativa não representa uma crítica à capacidade ou à autoridade dos pais. Não é um questionamento pessoal. Educação é um processo e não produto pronto e acabado que o pai paga e recebe de acordo com seu desejo, daí a importância da parceria com a escola e o acompanhamento dos pais ou responsáveis. Saber lidar com a frustração é importante, inclusive para evitar atos violentos".

Jô Antiório vê a "Lei da Palmada" com ceticismo. Ela não acrescenta muita coisa em relação ao que já estava previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente e no próprio Código Penal. O problema é estabelecer o limite da palmada. Não há termômetro para isso. Para ele, entretanto, a violência doméstica não é fruto da falta de leis. "Elas existem, só precisam ser cumpridas. Mais importante é fortalecer os Conselhos Tutelares para que os casos denunciados sejam encaminhados de forma adequada. Afastar as crianças da família e enviá-las para abrigos públicos, por exemplo, não é uma decisão simples. Pode ser ainda mais traumático, dependendo da situação", ressalta Jô Antiório.

Em resumo: os pais precisam aprender a dizer "Não" para dar limites e ensinar os filhos a conviver com as frustrações naturais ao longo da vida. A palmada é ineficaz quando resulta da perda de controle de quem deveria dar exemplo.




(texto publicado na revista Collina - edição 17)

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